CAPA
PONTO DE PARTIDA (SM pág.1)
Editorial de Henrique Carlos Gonçalves aborda conflito de interesses da propaganda na Medicina
ENTREVISTA (SM pág. 4)
Fernando Reinach, premiado pesquisador, fala sobre biodiversidade em entrevista à SM
CRÔNICA (SM pág. 8)
Ignácio de Loyola Brandão descreve - com humor - a visita do médico para uma consulta doméstica...
SINTONIA (SM pág. 10)
A história da evolução do planeta está nas "mãos" dos micro-organismos, segundo o médico infectologista Stefan Ujvari
SOCIAL (SM pág. 15)
O esporte abre as portas para a cidadania e a dignidade de várias crianças e adolescentes carentes da Fundação Casa
CONJUNTURA (SM pág. 18)
Crianças obesas apresentam maiores riscos do excesso de peso também na vida adulta
DEBATE (SM pág. 21)
Paulo Seixas (SES) e Renato Antunes (Ameresp) discutem o papel da Residência Médica no país
SAÚDE (SM pág. 28)
O setor de saúde francês, público e privado, no atendimento da população e no exercício da Medicina
HISTÓRIA (SM pág. 31)
Embora tenha deixado de ser ditadura há quase três décadas, o Brasil não deve esquecer os horrores da época
CULTURA (SM pág. 36)
Doenças e sofrimento moldaram o conjunto da obra do pintor norueguês Edward Munch
HOBBY (SM pág. 40)
As telas do cirurgião Rubens Coelho Machado mostram todo seu talento e paixão também na arte do pincel
TURISMO (SM pág. 43)
Convidamos você a dar uma volta fantástica ao passado, viajando conosco ao sudeste asiático
CARTAS (SM pág. 47)
Acompanhe os comentários dos leitores sobre a edição anterior da Ser Médico
POESIA
Texto de Luís Vaz de Camões encerra esta edição da SM com emoção e realismo
GALERIA DE FOTOS
HISTÓRIA (SM pág. 31)
Embora tenha deixado de ser ditadura há quase três décadas, o Brasil não deve esquecer os horrores da época
Deus e o diabo na terra do sol
Lei da anistia completa 30 anos como um imbróglio que conciliou o inconciliável
Ex-presos e perseguidos políticos em encontro na Secretaria Estadual de Justiça e da Defesa da Cidadania, que acontece todas as terças-feiras
O Brasil deixou de ser uma ditadura há quase três décadas, mas o seu espectro permanece como mácula no Estado democrático. A Lei 6.683, de 1979, conhecida como Lei da Anistia, completa 30 anos em agosto, arrastando-se como um imbróglio pela história recente do país. Concebida sob a ditadura, a lei anistiou centenas de “inimigos” do regime militar (1964-1985) que estavam exilados pelo mundo, o que permitiu a volta de cientistas, políticos e intelectuais cassados e impulsionou o restabelecimento da democracia no país. Mas como “o diabo mora nos detalhes”, a mesma lei recebeu sistemáticas interpretações que ampliam a anistia aos executores e mandatários de torturas e outros crimes, impedindo até hoje o esclarecimento de centenas de mortes e desaparecimentos.
Os sucessivos governos democráticos dos últimos 25 anos pouco fizeram para contar a verdadeira história do Brasil a partir do golpe militar de 1964. A letargia institucional sempre se sustentou no argumento de que a anistia foi ampla, geral e irrestrita. Instituições do Estado democrático, em especial as ligadas à defesa nacional, continuam guardando a sete chaves os arquivos que poderiam esclarecer as circunstâncias em que desapareceram centenas de opositores do regime. As famílias das vítimas reclamam, há décadas, o direito de conhecer a verdade. A mesma lei também é evocada para emperrar pedidos de reparação de danos impetrados na Justiça pelos sobreviventes.
No final de 2008, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) intimou o governo brasileiro a se manifestar em relação à responsabilização de mortes, torturas e desaparecimentos ocorridos durante a ditadura militar. A falta de posição – que a OEA traduz para “impunidade” – ameaça a aspiração brasileira a ter assento permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. Além de abalar a imagem externa do país, o assunto é motivo de velada contenda entre os ministros da Defesa, Nelson Jobim, e o da Justiça, Tarso Genro, junto com o secretário especial dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi. Genro diminuiu o tom sobre o assunto, mas Vannuchi faz coro com a comissão da OEA. Jobim evoca a Lei da Anistia de 1979 para manter os arquivos fechados e a tal “responsabilização” exigida pela OEA bem longe de executores de torturas e mortes.
Ao que tudo indica, o trigésimo aniversário da lei que conciliou o inconciliável será lembrado este ano tanto em celebrações como execrações.
Ex-presos e perseguidos políticos, além de familiares de mortos e desaparecidos, que se reúnem toda terça-feira em salão cedido pela Secretaria de Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, vêm discutindo como comemorar o aniversário da Lei da Anistia, sem esquecer o lado sinistro dessa história. “O ano de 2009 é rico em simbolismos para a recuperação de nossa história. Em agosto, comemoraremos os 30 anos da Lei de Anistia, que não foi ampla, geral e irrestrita como queríamos e o país necessitava, mas uma importante derrota para o regime de terror”, expressou o Jornal do Fórum de Ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo, em sua edição do primeiro trimestre de 2009. No mesmo salão também se reúnem os representantes da Comissão Estadual de Ex-Presos Políticos, criada pela Lei 10.726/01, composta por 27 entidades consideradas defensoras dos direitos humanos, entre elas o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp).
Golpe obscureceu a ciência brasileira
Passados 40 anos, FMUSP homenageia professores cassados
O regime militar instalado em 1964 representou um duro golpe para as pesquisas e o conhecimento médico-científico do país, quase aniquilando a carreira de proeminentes professores e pesquisadores. Passados 40 anos, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) prestou justa homenagem, no ano passado, aos professores Luiz Hildebrando Pereira da Silva, Isaias Raw, Thomas Maack, Erney Felício Plesmann de Camargo, Michel Rabinovith, Luis Rey e Pedro Henrique Saldanha, todos perseguidos pelo regime militar. Os oito tiveram seus títulos de professores cassados, foram impedidos de trabalhar no país. Com exceção de Saldanha, os demais buscaram exílio no exterior.
Livre-docente e notável pesquisador de Parasitologia e Imunologia, Luiz Hildebrando Pereira da Silva, foi processado, cassado e demitido da FMUSP por “atividade subversiva e propaganda comunista”, em 1964. Comunista, ele se envolvia na distribuição do jornal Emancipação, da Liga de Defesa Nacional, que pregava, entre outras coisas, o monopólio estatal do petróleo. Mas, nos “anos de chumbo”, até mesmo fechar as portas para que o barulho da rua não interferisse na concentração dos participantes dos seminários de biologia molecular era considerado suspeito. A denúncia contra o professor aconteceu por meio de cartas anônimas, “talvez por ciúme ou completa incompreensão sobre a situação política da época”.
Isaias Raw recebe medalha das mãos do atual diretor da FMUSP Marcos Boulos
Luiz Hildebrando (esq.) recebe título de Aloísio Ferreira, chefe da Casa Civil
O então reitor da USP, Luís Antonio Gama e Silva, nomeou uma comissão de investigação para apurar a subversão entre professores da universidade, e Luiz Hildebrando estava entre eles. Encaminhado à justiça militar, ele foi demitido durante o governo estadual de Ademar de Barros, com base no Ato Institucional nº 1 (AI-1). Entre os demitidos, havia não só os de ideologia comunista, como também aqueles contrários ao domínio dos militares e da censura. Eram conceituados cientistas das áreas de Genética, Bioquímica, Fisiologia Bioquímica e Microbiologia, disciplinas que na época se integravam, dando origem à Biologia Molecular, que estava na vanguarda dos estudos laboratoriais. A demissão do grupo causou um atraso ao país nessa área. Hildebrando reconhece hoje que “talvez eles tivessem um olhar pretensioso em relação aos colegas da Anatomia, da Histologia e clínicos tradicionais, o que pode ter provocado reações de revanche”.
Luiz Hildebrando passou a viver na França, trabalhando como pesquisador do Instituto Pasteur de Paris. Três anos depois, foi absolvido pela justiça militar brasileira por falta de consistência nas apurações e acabou voltando para atuar no Departamento de Genética da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto. Mas, em 1969, viu-se demitido novamente, desta vez com base no AI-5, o mais autoritário de todos, que fechou o Congresso Nacional. Voltou a Paris, continuou seu trabalho no Instituto Pasteur, casou-se, teve filhos e aposentou-se em 1997. De volta ao Brasil, prestou concurso e foi nomeado professor titular de Parasitologia da USP, assumindo programas de pesquisa em Rondônia. Atualmente, passa 70% de seu tempo no Brasil e 30% na França.
Aposentadoria precoce
Em 1969, Isaias Raw era catedrático do Departamento de Bioquímica, quando tornou-se o mais jovem professor aposentado da FMUSP. Ilustre, ele ajudou a criar o Hospital Universitário da USP e o Posto de Saúde do Instituto Butantan, além de ferrenho defensor do vestibular unificado no país. Para ser “subversivo” na época “nem precisava ser de esquerda, bastava ser considerado uma liderança”, lembra o professor. Raw foi detido pela primeira vez em 1964, para ser impedido de prestar um concurso para professor, ficando 13 dias na prisão. “Vieram 25 soldados, que cercaram a minha casa, às 11 horas da noite, para me prender como se fosse uma pessoa extremamente perigosa”. A liberação ocorreu depois que um jornal do Brasil publicou carta de protesto contra a prisão de Raw, assinada por conceituados professores de outros países, entre eles sete prêmios Nobel.
Teve o diploma cassado em 1969 e foi aposentado compulsoriamente. “Portanto, eu não tinha mais profissão no Brasil”. Deixou o país, indo trabalhar em universidades norte-americanas e, também, em Israel. Nos EUA, atuou no Massachusetts Institute of Technology e na Harvard School Public Health. “Mas não tive as mesmas oportunidades que se conquista no país em que se nasce”, completa.
Raw se considera parte de um “grupo de elite” dentre as vítimas da ditadura. “Não fiquei preso anos a fio, não desapareci, não perseguiram minha família”, ressalta. “O que mais afetou foi ser preso na frente dos filhos que aprenderam a vida toda que só é preso quem é culpado de algo”. Raw voltou ao Brasil beneficiado pela Lei da Anistia. Em 1985, assumiu a presidência da Fundação Butantan, onde está até hoje. Coordena importantes pesquisas no país, sendo o grande responsável pela instituição ter se transformado em polo produtor de vacina. Ele ressalta que os oito colegas da FMUSP cassados eram profissionais brilhantes. “O grupo pequeno que sobreviveu está na casa dos 80 anos, com o cérebro funcionando e contribuindo para a sociedade. E merece um pedido de desculpas” , observa Raw – pedido esse feito apenas pela FMUSP até o momento.
A mais longa prisão
Thomas Maack, professor do Departamento de Fisiologia da FMUSP, ficou preso por seis meses em 1964, a maior parte do tempo em cela solitária. “Foi a mais longa prisão política sofrida por um docente em São Paulo”, relembra. Ele compartilhava com Isaias Raw ideais de modernização da universidade, o fim da cátedra vitalícia e a unificação do vestibular, entre outros. Portanto, outro “subversivo”. Foi demitido por decreto do então governador Ademar de Barros. Enquanto esteve preso, sua mulher, Isa Tavares Maack, também professora, teve a residência invadida, sendo interrogada e pressionada a delatar companheiros do marido.
Thomas Maack também recebeu a homenagem de Boulos
Thomas nasceu na Alemanha, sua família veio para o Brasil quando ele tinha um ano. Ao ser solto, o médico teve seu processo de naturalização anulado, sua mulher era constantemente ameaçada de ser presa e o bebê do casal foi proibido de frequentar a creche para filhos dos funcionários da USP.
A família Maack fugiu para os EUA, quando um novo pedido de prisão contra Thomas foi expedido. O casal construiu carreira como professores titulares em solo norte-americano. Isa, de História, no Essex Country College; e Maack, de Fisiologia e Medicina, na Cornell Medical College. “Nossos pais envelheceram, ficaram doentes e faleceram longe de nós”. O professor conta que conserva ainda certa sensação de frustração pela “tentativa permanente de volta ao Brasil”, que nunca se concretizou. Com a anistia de 1979, a família poderia ter retornado, porém faltaram propostas concretas de trabalho para o casal, que já tinha uma carreira estável e duas filhas crescidas nos EUA. “Não se fica no exílio forçado 15 anos para depois reiniciar a vida como se nada tivesse acontecido nesse tempo”, conclui o professor.
A ditadura não foi branda
Em editorial publicado em 17 de fevereiro, o articulista Marcelo Coelho do jornal Folha de São Paulo, afirma que o Brasil não teve uma ditadura, mas uma “ditabranda”, provocando numerosas cartas de protestos e até uma manifestação em frente ao prédio do periódico. O termo é uma tradução do neologismo “ditablanda”, usado pelo general ditador Augusto Pinochet, quando este tomou a presidência do Chile. A seguir, os professores de medicina cassados comentam o assunto:
- “(...) estou indignado com o termo ‘ditabranda’. Pergunte às famílias de Rubens Paiva, Manoel Fiel Filho, Olavo Hansen, Vladmir Herzog e de muitos outros que foram assassinados pela ditadura se elas acham que foi branda. O termo é uma ofensa para a memória de todos que foram brutalmente torturados, ‘desaparecidos’ e mortos pela ditadura, para as suas famílias e para todo o povo brasileiro”. Thomas Maack, professor de Medicina preso e perseguido pela ditadura brasileira, exilando-se nos EUA, onde vive até hoje.
- “O termo ‘ditabranda’ é coisa de analista de gabinete. Talvez a ditadura brasileira tenha sido, de início, menos sanguinária do que a da Argentina, mas nos objetivos ideológicos, ela foi tão ou mais repressiva.” Luiz Hildebrando Pereira da Silva, professor e pesquisador de Parasitologia e Imunologia,cassado pela ditadura.
Formatura, 40 anos depois
A turma de 1972 do curso de Medicina da Universidade Estadual da Guanabara (hoje Universidade Estadual do Rio de Janeiro-UERJ) demorou 40 anos para realizar a cerimônia de formatura. Naquele ano, a solenidade foi interrompida no meio. A história teve início em 1968, quando estudantes faziam uma manifestação no Rio de Janeiro em protesto contra a prisão de colegas, ocorrida no Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna (SP). O aparato de repressão militar atacou os manifestantes, ferindo sete deles, entre eles o estudante de Medicina Luiz Paulo da Cruz Nunes, que se formaria em 1972. Nunes não resistiu ao tiro na cabeça.
Para a formatura da turma, o colega morto foi escolhido como patrono. “Mas o então diretor da faculdade, Jaime Landmann, não concordou com a escolha e ficou acertado que o novo patrono seria Albert Schwaitzer”, revela Pedro Chiavegato, um dos formados, que hoje atua em Taubaté. O discurso da oradora, submetido a censores da ditadura, acabou vetado. No momento da colação de grau, a estudante subiu ao palco e sem nada dizer virou folhas em branco, em alusão ao discurso censurado. Durante a solenidade, o diretor da faculdade mencionou que um dos integrantes da turma havia falecido, quando um dos colegas bradou: “não, ele não faleceu, foi falecido”. Landmann teria, então, cancelado a cerimônia, segundo Chiavegato.
Posteriormente, os alunos receberam os diplomas na sala do diretor. “Além do diretor e da secretária, havia na sala outro cidadão que ninguém sabia quem era, provavelmente alguém ligado ao regime militar”, observa Chiavegato.
Em outubro último, 85 dos 128 colegas de Nunes puderam receber seus diplomas diante de familiares e amigos, em solenidade no auditório da faculdade.O discurso censurado em 1972 foi finalmente lido. Na cerimônia, a UERJ pediu desculpas públicas aos ex-alunos e, surpreendendo a turma, deu à pequena praça, localizada em frente à capela ecumênica da instituição, o nome do estudante morto.
(Colaboraram Nara Damante e Patrícia Garcia)