CAPA
PONTO DE PARTIDA
Editorial, com Isac Jorge Filho
ENTREVISTA
Nosso convidado é Diego Gracia, um dos papas da Bioética na Europa
CRÔNICA
Acompanhe texto bem-humorado de Tufik Bauab, médico radiologista
CONJUNTURA
Uma análise da história da hanseníase no país
BIOÉTICA
A situação sombria das mulheres indianas
MÉDICAS EM FOCO
Marilza Rudge e Mary Ângela Parpinelli contam suas trajetórias profissionais
DEBATE
A quebra das patentes dos medicamentos no Brasil
FOTOLEGENDA
Harold Pinter, prêmio Nobel de Literatura, e a política externa dos EUA
SINTONIA
Hospital expõe fotos tiradas por crianças e adolescentes internados
LIVRO DE CABECEIRA
Totalidade e Infinito - Emmanuel Lévinas
CULTURA
Faculdade de Medicina da Bahia: 1ª instituição do ensino superior do país
TURISMO
O crescimento - prazeroso - do turismo rural no Brasil
HOBBY DE MÉDICO
Quando a partitura se transforma em instrumento de trabalho...
POESIA
Entre o Sono e o Sonho - Fernando Pessoa
GALERIA DE FOTOS
CULTURA
Faculdade de Medicina da Bahia: 1ª instituição do ensino superior do país
A “mainha” do ensino médico no Brasil
Naomar de Almeida Filho*
Integrante do conjunto arquitetônico do Pelourinho,
o prédio da Faculdade de Medicina da Bahia
passa por um difícil processo de restauração
Apesar dos avanços, muito ainda precisa ser feito para completar a restauração do antigo prédio da Faculdade de Medicina da Bahia, primeira instituição de ensino superior do Brasil. Além disso, parte do trabalho de recuperação terá de ser refeito. Com mais de 20.000 m2 de área construída, a faculdade faz parte do conjunto arquitetônico do Pelourinho, no centro antigo de Salvador, tombado pela Unesco como Patrimônio da Humanidade.
O bairro é o coração da Bahia: foi no Pelourinho que teve início a povoação da cidade, com a chegada de Thomé de Souza, em 1549. Depois de um período de degradação e abandono, hoje conta com mais de 700 casarões coloniais recuperados, além de duas alas do majestoso prédio da matriz da medicina nacional.
Há 198 anos, Dom João VI assinou a carta que instituiu o Colégio de Cirurgia da Bahia, instalado no Hospital Militar, na sede do antigo Colégio dos Jesuítas no Terreiro de Jesus. Durante o século XIX, a Faculdade de Medicina foi ampliada com a incorporação do ensino de Farmácia e Odontologia. Em 1908, após um incêndio criminoso, o prédio foi reformado e ampliado, resultando em um complexo de instalações de ensino e pesquisa avançado para a época, composto por quatro blocos: Ala Nobre, Ala Nordeste, Conjunto de Pavilhões e Biblioteca.
A Ala Nobre abrigava gabinetes e salões cerimoniais, com mobiliário em jacarandá maciço, valiosas esculturas e quadros a óleo. A Ala Nordeste e o Conjunto de Pavilhões compreendiam laboratórios – incluindo aquele em que Pirajá da Silva, há cem anos, descobriu o Schistosoma mansoni –, salas de aula, anfiteatro e auditórios. A Biblioteca foi montada em torno de uma torre de ferro naval, construída num estaleiro de Berlim, com cinco andares de estantes articuladas e corredores de piso de vidro.
A partir da década de 30, passou por mutilações arquitetônicas advindas de novas finalidades – como a instalação do Instituto Médico-Legal no térreo da Biblioteca – e do aumento do contingente estudantil. Em 1946, a Universidade da Bahia foi constituída pela união das faculdades de Direito, Medicina e Escola Politécnica da Bahia. As atividades de ensino foram gradativamente transferidas para as novas instalações do Hospital das Clínicas e do Campus Canela. Na década de 1980, o Instituto Médico-Legal Nina Rodrigues transferiu-se para novas instalações, as catacumbas foram escavadas e passaram a abrigar o Museu de Arqueologia e Etnologia da UFBA e a Ala Nobre foi reformada para abrigar o Memorial da Medicina Brasileira. Porém a Biblioteca, a Ala Nordeste e o Conjunto de Pavilhões, com seus solenes auditórios e anfiteatros, pavilhões de aulas e numerosos laboratórios, ficaram abandonados, transformando-se em dantesca ruína.
Em 1997, a Faculdade de Arquitetura da UFBA iniciou, por meio do projeto Escola Oficina de Salvador, a restauração da Faculdade de Medicina do Terreiro de Jesus. Utilizando-se de benefícios da Lei de Incentivo à Cultura, o BNDES e a Eletrobrás patrocinaram a primeira etapa de restauração, com apoios no valor de R$1.555.000,00 e de R$1.097.500,00, respectivamente. O Anfiteatro Alfredo Britto foi restaurado e reinaugurado em 2001. O trabalho continua e, atualmente, quase 80% da Ala Nordeste foi restaurada. Em 2004, o Ministério da Saúde firmou convênio para a recuperação do imóvel da biblioteca e a implantação de um laboratório de restauro de obras raras. Os trabalhos de restauração arquitetônica foram iniciados em junho de 2005 e estão adiantados.
A Biblioteca abrigava livros raros, de origem francesa e alemã, desde meados do século XIX até a primeira metade do século XX. Com a transferência das faculdades para o Campus Canela, foram retirados livros e revistas que na época pareciam modernos e adequados à nova escola. Deixaram para trás o restante do acervo; milhares de volumes amontoados em estantes enferrujadas, dividindo espaço nos velhos corredores e salões com móveis e equipamentos descartados, na companhia de ratos, morcegos e pombos. Em 2003, a sociedade baiana começou a se mobilizar para salvar o que restava da Biblioteca. Professores, servidores, alunos e ex-alunos da UFBA e de outras instituições, usando as próprias mãos, removeram para setores recuperados da Ala Nordeste o que restava do acervo. Em regime de mutirão, mais de uma centena de voluntários se revezaram todos os sábados, durante um ano inteiro. Ao final, cerca de cem mil volumes foram resgatados. Infelizmente, para um terço do valioso acervo a ajuda chegou tarde; milhares de livros já se haviam transformado em uma pasta de celulose, crestada, contaminada por fungos, vergonhoso monumento à incúria e ao descaso. Atualmente, quase dez mil livros e documentos raros já foram restaurados e fazem parte do acervo da nova Biblioteca Memorial da Saúde Brasileira.
Apesar dos avanços, nunca conseguimos captar recursos para restaurar o Conjunto de Pavilhões, composto de quatro edificações sobre a encosta, de onde se tem uma vista magnífica da Bahia de Todos os Santos. A reforma da Ala Nobre, realizada em 1982, foi superficial e incompleta. A cobertura do Salão Nobre desabou e a estrutura do teto do prédio do Memorial está comprometida e ameaça ruir. Doações de estabelecimentos médicos e investimentos captados pelos diretores da Faculdade de Medicina permitiram a recuperação da pintura da fachada, o escoramento do telhado e pequenas intervenções paliativas, pelo menos estabilizando a degradação física da velha casa. Precisamos, enfim, completar a restauração desse monumento da Medicina. Só então será possível implementar o já elaborado projeto museológico do novo Memorial da Medicina Brasileira. Seria maravilhoso se isto pudesse ocorrer na festa do bicentenário da escola, em 18 de fevereiro de 2008.
Na brisa do mar
As últimas aulas entre bordéis e boleros
Fiz parte da última turma que assistiu aulas na velha Faculdade de Medicina do Terreiro de Jesus. No ano de 1970, dava para sentir o clima de decadência do imóvel. Os outrora modernos laboratórios estavam desaparelhados e quase desertos. Alguns professores teimavam em ministrar aulas no velho prédio, totalmente sem condições. Em um auditório bem construído, pé-direito alto, com bancos duros de madeira nobre, o simpático bedel, alto, magro e negro, anunciava em tom solene a presença do catedrático, solicitando a todos que ficassem de pé para recebê-lo. As aulas eram grandiosos discursos.
No anfiteatro redondo, um elegante senhor de capa branca se empenhava em chamar a atenção dos alunos para fórmulas e diagramas, disputando-a com o fundo musical de rumbas e boleros dos bordéis e bares do Pelourinho, então plenamente ocupado pela prostituição e marginalidade. Em pouco tempo, a turma já se dividira em dois blocos. Um era formado predominantemente por mulheres, que disputavam lugar na frente da sala, no afã de melhor escutar a voz do mestre. No outro grupo, todos rapazes que, a pretexto de gozar da brisa morna do mar, disfarçadamente arrastavam as carteiras para perto das janelas, com os olhos na aula e os ouvidos na música.
Num laboratório do subsolo, que chamávamos de catacumbas, um alegre professor de gravata borboleta de bolinhas esforçava-se para nos convencer da utilidade de aparelhos obsoletos e inoperantes. Lembro-me da demonstração de uma ampola de Raios-X, seguramente mais velha que o já bastante idoso apresentador que, se funcionasse, faria algo sensacional: uma radiografia.
Minhas lembranças da velha Biblioteca são poucas: entre móveis velhos e caixas abertas, muitos livros em francês e alemão, alguns em espanhol ou inglês, poucos em português, causavam a nós, calouros monoglotas, admiração e receio. Com todos os pesares, a experiência de ter sido aluno da velha e querida Faculdade do Terreiro marcou profundamente a nossa geração. Colegas daquele tempo compartilham, ainda e sempre, uma cumplicidade discreta, construída em aulas, encontros, científicos ou não, em passeios pelos seus corredores ou quando sentávamos para ver o sol se pondo sobre a Ilha de Itaparica. (NAF)
Ruína da fachada lateral da Biblioteca.
O prédio restaurado pertence à Ala Nordeste
*Naomar de Almeida Filho é médico, reitor da Universidade Federal da Bahia, foi aluno e professor da Faculdade de Medicina da UFBA.
Fontes:
www.ufba.br
www.medicina.ufba.br (link: História da Medicina)
www.eos.ufba.br
“Soteropaulistas”
Nascidos e formados em Medicina na Bahia,
os conselheiros do Cremesp Bráulio Luna Filho e Renato Silva
moravam em Salvador no auge da degradação do Pelourinho.
Depois consolidaram suas carreiras no Estado de São Paulo.
Em uma breve entrevista, ambos falam dessa experiência à Ser Médico.
“Estudei na antiga faculdade apenas um semestre, em 1973. Na época, o prédio, apesar de bonito, estava em péssimas condições. Como o complexo do Terreiro de Jesus era grande e fechado, os estudantes não interagiam muito com os moradores e freqüentadores do Pelourinho. Na área viviam as pessoas em situação mais degradante, como as prostitutas em fim de carreira etc. Ainda me recordo das excelentes aulas do professor Penildo, que entremeava conhecimento de farmacologia com ilações culturais e humanistas, tão necessárias aos jovens médicos que éramos. Também me vem à memória o belo e mal cuidado jardim onde, nos intervalos das aulas, o tema permanente era a injustiça do abandono de um prédio tão bonito. Coisas do Brasil. A restauração de parte do conjunto do Pelourinho é um marco que impulsiona a preservação do patrimônio arquitetônico nacional. A da antiga faculdade de Medicina será mais um passo nessa direção, necessário a um País que pretende cultivar a sua memória”. - Bráulio Luna Filho, cardiologista
“Fiz residência na Faculdade de Medicina da Bahia, mas no prédio atual, o antigo já estava desativado. Como médico, minha convivência com as pessoas que moravam no Pelourinho, uma região marcada pela presença de prostíbulos, foi uma grande escola sobre doenças sexualmente transmissíveis. Foi também um aprendizado humano; apesar da vida dura e sofrida, essas pessoas eram imbuídas de um espírito solidário e cooperativo. Estive recentemente com o reitor da universidade para conhecer o trabalho fenomenal de restauração que ele está fazendo. Além de desejar sucesso na empreitada, quero também ajudar efetivamente. É o mínimo que nós, egressos do ensino público, podemos fazer por esse complexo que faz parte da história da Medicina – não só da Bahia, mas do país”. - Renato Silva, cirurgião