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CAPA

PONTO DE PARTIDA
Editorial, com Isac Jorge Filho


ENTREVISTA
Nosso convidado é Diego Gracia, um dos papas da Bioética na Europa


CRÔNICA
Acompanhe texto bem-humorado de Tufik Bauab, médico radiologista


CONJUNTURA
Uma análise da história da hanseníase no país


BIOÉTICA
A situação sombria das mulheres indianas


MÉDICAS EM FOCO
Marilza Rudge e Mary Ângela Parpinelli contam suas trajetórias profissionais


DEBATE
A quebra das patentes dos medicamentos no Brasil


FOTOLEGENDA
Harold Pinter, prêmio Nobel de Literatura, e a política externa dos EUA


SINTONIA
Hospital expõe fotos tiradas por crianças e adolescentes internados


LIVRO DE CABECEIRA
Totalidade e Infinito - Emmanuel Lévinas


CULTURA
Faculdade de Medicina da Bahia: 1ª instituição do ensino superior do país


TURISMO
O crescimento - prazeroso - do turismo rural no Brasil


HOBBY DE MÉDICO
Quando a partitura se transforma em instrumento de trabalho...


POESIA
Entre o Sono e o Sonho - Fernando Pessoa


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Edição 34 - Janeiro/Fevereiro/Março de 2006

ENTREVISTA

Nosso convidado é Diego Gracia, um dos papas da Bioética na Europa



O importante não é tomar decisões clínicas corretas e, sim, prudentes 

Por Concilia Ortona* 

Quem se vê frente a frente com Diego Gracia – psiquiatra e professor de História da Medicina e Bioética e diretor de pós-graduação da disciplina na Universidade Complutense de Madri e do Instituto de Bioética da Fundação para Ciências em Saúde da mesma cidade, entre outros títulos  – surpreende-se pela forma com que ele consegue manter a simplicidade, apesar de hoje ser quase sinônimo de uma das principais correntes de pensamento destinadas a dar  fundamentos teóricos à Bioética: a espanhola. É de sua autoria o livro Fundamentos da Bioética, de 1989, responsável pelo impulso do tema na Europa.  

Merece a sua defesa, também, a lógica de que a ética na prática clínica se baseia nos fatos levantados na consulta, aliados à estimação de valores de cada sinal e sintoma verificado – incluindo, aqui, os juízos clínicos e morais levantados junto a cada paciente. Alheio ao interesse criado em torno de sua presença, durante o Congresso Brasileiro de Bioética, realizado no último trimestre de 2005, em Foz do Iguaçu, quando abordou Um Enfoque Socrático no Ensino da Bioética e, ainda, A Semiologia dos Conflitos Morais em Bioética), Gracia foi um dos únicos conferencistas a participar de várias sessões de temas livres, muitas com iniciantes na área.

Com a mesma gentileza, concedeu entrevista exclusiva ao Cremesp, por meio de seu Centro de Bioética, na qual comentou: “minha tese é de que os cursos de Bioética devem ser verdadeiras escolas de deliberação”. Desta conversa  participou sua ex-aluna Elma Zoboli, professora da Escola de Enfermagem da USP.  A seguir, veja os principais trechos da entrevista.
 


Cremesp: O senhor não é apenas contemporâneo do aparecimento da Bioética. É um de seus precursores. Como surgiu o interesse pelo tema?
  
Diego Gracia:
Minha formação começou na faculdade de Filosofia, seguida de Medicina, em Psiquiatria, e defesa de tese sobre História da Medicina na Universidade de Madri. Meu projeto de pesquisa, iniciado em 1974, tinha uma abordagem diferente em relação àqueles traçados por colegas que também escolheram a História da Medicina, pois eles vincularam este tema a uma certa especialidade. Dediquei-me a algo voltado à “imagem ideal do médico”, promovendo uma análise sobre como os médicos consideravam que deveriam ser vistos pelo restante da sociedade e como acreditavam que os demais os viam. Ou seja a imagem que o médico quer nos dar e que gostaria de acreditar que tivesse e, portanto, como os demais lhe viam. A partir daí, percebi que estava me dedicando à Ética – ou à antropologia médica, como preferiam naquela época. Parti, então, para os Estados Unidos, onde o movimento da Bioética estava surgindo. Tive a sorte de conseguir uma bolsa de estudos que me permitiu freqüentar onze programas de humanidades médicas em Bioética naquele país, em escolas como Hastings Center, em Nova Iorque, Kennedy Institute, em Washington e Albert Jonsen, em São Francisco. Assim, consegui ter uma idéia muito clara de como a Bioética era vista na América e dos meios de investigação que eram empregados por lá. Tentei levar esse conhecimento para a Espanha.  

Cremesp:  Há alguma diferença em estudar e/ou praticar Bioética nos EUA, em comparação aos países latino-americanos? 
 
Gracia:
  Claro! Quando voltei para casa, me dei conta da importância do que estava nascendo nos EUA, da necessidade de se recriar a Bioética na Espanha e em outros países da Europa e Europa Mediterrânea. Recriar, porque a cultura era distinta. Não se tratava de traduzir e, sim, de reescrever. Coloquei o resultado desse trabalho no livro Fundamentos da Bioética, de 1989, no qual falo sobre a história da Bioética – aproveitando minha pesquisa que levantou como os médicos se viam e, por conseqüência, a história da diversidade médica e, portanto, da ética médica. Respondendo à pergunta referente às diferenças de aplicação da Bioética. A Ética, como disciplina, não surgiu nos EUA: nasceu na Grécia, muito perto da Espanha. Em um país latino e em outro mediterrâneo que seguem uma linguagem mais clássica e freqüente em nosso meio que é a Ética das Virtudes, de Aristóteles. Diferentemente, as éticas que sugiram a partir do século XVII no Reino Unido, nos Estados Unidos, Alemanha, na Europa Central, não são éticas das Virtudes e, sim, éticas dos Princípios, ou Ética dos Direitos e dos Deveres – algo um pouco estranho para nós. Então achei lógico estudar bioética em um lugar que tinha uma matriz cultural muito distinta da qual eu nasci, a anglo-saxônica, com o desafio de assumir todos os seus objetivos, porém, adaptando-a à matriz cultural do meu país. Se fosse uma mera imitação, jamais funcionaria.   

Cremesp: É isso que se quer dizer quando se fala que “os princípios são cânones passíveis de conteúdo”? 

Gracia:
Exatamente! Vejamos a Ética dos Princípios ou a Ética dos Direitos, empregada nos países anglo-saxões. Creio ser um erro enorme considerar tudo referente ao primeiro mundo como algo péssimo e demoníaco. Devemos analisar profundamente: isso me parece correto e pode enriquecer meu povo? Então é ótimo e útil adaptar à matriz cultural do meu povo. Cada cultura tem que descobrir e promover sua própria Bioética. E não se iluda: nada poderá nos livrar da obrigação de revermos nossas origens e estabelecermos nossa própria Bioética. Os bioeticistas brasileiros precisam fazer a bioética brasileira, tentando responder os problemas brasileiros. Os demais não conhecem os problemas do país – ou conhecem de maneira superficial. Por outro lado, há regras gerais e, ao mesmo tempo, compatíveis à singularidade dos contextos. A consciência do dever é uma consciência geral. Brasileiros não possuem uma consciência do dever diferente da dos espanhóis. Normas sobre justiça valem tanto no Brasil como em outras partes do mundo.  

Cremesp: Fala-se muito da base “política” da Bioética. O Congresso Mundial, realizado em 2002 em Brasília, foi praticamente dedicado ao poder e à injustiça. O senhor compartilha dessa idéia?  

Gracia:
Sei da importância de tudo isso, mas fico de fora.  O motivo pelo qual sou um educador  e não político é acreditar mais na educação do que na política. A transformação da sociedade é de baixo para cima e não o contrário. Trabalhar em política sem a sociedade civil me parece falso.   Cremesp: Analisando os princípios de Potter Van Rensselaer, autor do livro Bioethics, Bridge to the Future, que referenciou historicamente os quatro princípios da Bioética, ou seja, Autonomia, Beneficência, Não-Maleficência e Justiça, há algum que se sobreponha aos outros?   Gracia:  É difícil, pois todos são importantes. No entanto, nas bioéticas liberais existe um princípio que pode ser visto como básico, que é o de Autonomia. Nos Estados Unidos, é excessivamente valorizado. Já no Japão, por exemplo, é inconcebível que um médico aparente dividir a responsabilidade do tratamento com o próprio paciente. Já na Europa é tradição sobrepujar a  Justiça, em especial, nos temas sanitários. Lá, é fundamental que os serviços de assistência sanitária sejam universais, públicos e atendam a todos igualitariamente, ao contrário do que é fato em terras norte-americanas.  Certa vez, participei de uma reunião de Bioética, ao lado de um professor norte-americano que vivia temporariamente na Holanda. Brincando, ele disse: “cada vez que eu atravesso o Atlântico, fico numa situação curiosa. Na Europa, todos os debates se relacionam aos problemas de Justiça. Nos Estados Unidos, à Autonomia”.  

Cremesp:  Aos seus alunos, o senhor incentiva o emprego da ética e da bioética no processo de tomada de decisão –  o que vem ao encontro de grandes  preocupações dos médicos e demais trabalhadores da Saúde. Como é o método e no que torna os profissionais melhores?  

Gracia:
A associação da ética à clínica vem das origens da ética, em Aristóteles. É essencial para médicos, enfermeiros e o contingente que lida com doentes. Aos meus estudantes, costumo dar um exemplo bem claro e ilustrativo que nada tem a ver com Ética. Suponhamos que estamos dirigindo um ônibus em uma estrada e temos um caminhão pela frente e que o nosso problema se resuma em ultrapassá-lo ou não. Conseguir promover tal ultrapassagem dependerá de múltiplos fatores, entre eles, a pressa dos condutores do ônibus e do caminhão; se o veículo da frente é mais ou menos potente do que o de trás, a distância entre os dois carros, enfim, podemos considerar inúmeros elementos até a eventual tomada de decisão. Esse processo de dúvida se chama “deliberação”. Precisamos deliberar se realmente temos que ultrapassar o dito caminhão e quando fazê-lo, e, principalmente, adotar uma decisão prudente. Podemos nos equivocar, podemos matar, mas nossa obrigação é sermos prudentes. 

Duas pessoas vão atrás do caminhão com carros exatamente iguais e com pressa. Uma pode possuir inúmeras afinidades comigo, ser minha esposa. Ponderaremos, tomaremos duas decisões, não obrigatoriamente unânimes. As duas podem ser diferentes, porém corretas. Mas é necessário que ambas sejam prudentes. Penso que, no dia-a-dia do médico, essa é a regra de ouro. Sua função é conseguir trabalhar as decisões de tal maneira que sejam prudentes, ainda que distintas das que seguiriam outros colegas. Numa decisão clínica há representantes de várias especialidades, tentando resolver qual é a terapêutica mais adequada a determinado paciente. Diferentes médicos podem discordar em relação ao indicado àquele doente e todos estarem atuando bem. A função da ética não é buscar uma unanimidade. É evitar que as decisões sejam imprudentes. 

Cremesp: Dependendo da pressa e da urgência, é factível avaliar 100% das situações negativas capazes de acontecer?  

Gracia:
Nem todas, óbvio. E se o motorista sofrer um infarto enquanto está dirigindo e provocar um acidente? E se dormir, sem querer?  E se um pneu furar e ele bater? Veja, as decisões prudentes não são necessariamente as mais certas. Porque, em ética, não existe certeza: há prudência ou imprudência. O objetivo da deliberação é tomar atitudes  prudentes, não as decisões corretas. Posso me equivocar e matar, ainda que com prudência, e salvar, apesar da imprudência.  

Cremesp: O senhor não sente que, ao freqüentarem aulas de extensão ou atualização, a maioria dos médicos busca no professor a certeza?  

Gracia:
Claro! Todo o mundo quer a certeza! Também adoraria contar com a certeza de que nada vai me acontecer ao ultrapassar o caminhão... Mas nada vai me dar isso. Nada pode dizer “você está totalmente seguro ao fazer a ultrapassagem”. O método proposto consiste em diminuir as incertezas a um ponto que se possa dizer que tomamos uma decisão prudente. Não pretende anular a incerteza, pois isso seria impossível.  

Cremesp: Agindo assim, o médico pode se considerar ético?  

Gracia:
Está sendo ético, mas não apenas ético. Uma deliberação é baseada em ética, sim, mas também é em clínica.  Não existe nenhum médico que inclua a totalidade de fatores referentes ao paciente durante uma tomada de decisão: se explorar exaustivamente o doente, nunca lhe passará um tratamento. Morreriam todos os que caíssem em suas mãos.   

Cremesp: O ensino da ética durante a graduação de Medicina deveria ser baseado neste método? Deve ser posto em prática junto com a clínica?  

Gracia:
Exato. O ensino da ética na faculdade de Medicina ou de Enfermagem deveria ter duas partes. Numa primeira, quando ainda se está estudando anatomia, fisiologia e bioquímica, ofereceríamos um curso básico, composto por teorias morais e assuntos vinculados fundamentalmente à Filosofia, ou seja, um ensino teórico. Na outra, o curso se voltaria a como se aplica as teorias à resolução de casos clínicos. É como manejar os casos clínicos: o procedimento é o mesmo, se bem que ampliado. É o bonito da história: ensinarmos que a lógica da clínica e a da ética são iguais e, portanto, nenhuma parece aos alunos uma coisa estranha. 

* Concilia Ortona é jornalista do Centro de Bioética do Cremesp 

Veja a entrevista na íntegra no site do Centro de Bioética do Cremesp 


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