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"A Teoria do Caos e a Medicina", por Moacir Fernandes de Godoy


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Urgência e Emergência: situação crítica no sistema público de saúde


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Memórias de cárceres: Luiz Guedes e Eleonora Menicucci


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Edição 29 - Outubro/Novembro/Dezembro de 2004

SINTONIA

"A Teoria do Caos e a Medicina", por Moacir Fernandes de Godoy

A Teoria do Caos e a Medicina

Moacir Fernandes de Godoy*

O procedimento analítico trouxe enormes contribuições ao conhecimento científico atual. Porém, o problema da abordagem clássica mecanicista é considerar uma determinada entidade como simples somatória de suas partes individuais. Além disso, a aplicação desses princípios clássicos depende da aceitação de que não haja interação entre as partes, ou que ela seja tão fraca a ponto de ser negligenciada.

Depende também de que as relações que descrevem o comportamento das partes sejam lineares, com aproximações e correções numéricas para explicar as discrepâncias. Essas condições quase nunca são satisfeitas nas entidades chamadas sistemas, compostas de partes em interação. Assim, a maioria dos sistemas apresenta comportamento não-linear. Isso tudo sinaliza que o organismo humano, ao funcionar como um sistema, tenha comportamento não-linear.

Os sistemas complexos não-lineares obedecem ao que se convencionou chamar Teoria do Caos, a qual estuda o comportamento dos sistemas que, apesar de serem aparentemente aleatórios, apresentam uma ordem oculta que os torna potencialmente previsíveis. O termo caos não deve ser entendido no seu sentido popular, com conotação negativa de confusão, desordem, desorganização, desarrumação, balbúrdia, escuridão, trevas, entre outros, conforme consta na definição vernácula. Mas sim no seu sentido filosófico-científico moderno, como interação entre ordem e desordem, entre desintegração e organização, que segue permanentemente numa espiral evolutiva, mas sob a vigilância implacável da entropia.

Considera-se que nos sistemas complexos haja apenas uma quantidade desprezível de aleatoriedade. Assim, o comportamento desses sistemas é considerado determinístico. Além disso, um aspecto fundamental é a sensível dependência das condições iniciais pelas quais as mínimas diferenças, no início de um processo, podem levar a situações completamente opostas ao longo do tempo, o que é conhecido como Efeito Borboleta.

A Medicina, por lidar com a interação de grande quantidade de fatores, deveria ser focalizada sob o aspecto da não-linearidade sendo esta uma de suas principais características.

As doenças ou os mecanismos fisiopatológicos em geral comportam-se como parte de um sistema complexo dinâmico não-linear determinístico, comandados pela Teoria do Caos. Até o momento, os que se ocupam da Medicina concentram-se preferencialmente em uma abordagem linear, na qual os fenômenos quase sempre são tratados de forma estática e os efeitos são diretamente proporcionais à causa, pouco valorizando o comportamento dinâmico e não-linear. Mas, nas situações clínicas, há uma assombrosa variabilidade nas condições finais com sensível dependência da condição inicial. Assim, as pequenas disfunções em órgãos isolados levam, paulatinamente, a certos graus de disfunção à distância, que vão se associando e, de acordo com as variáveis dependentes ou não de cada indivíduo, culminam, às vezes, em situações catastróficas como a morte.

Na vivência médica diária observa-se com freqüência que pacientes com mesmos fatores de risco, em condições ambientais similares e com hábitos parecidos evoluem com manifestações clínicas de comportamento totalmente diverso e com respostas terapêuticas dispares. Obviamente, o comportamento de massa é razoavelmente uniforme, mas em termos individuais as diferenças se tornam marcantes. Como do ponto de vista clínico é com o indivíduo que devemos nos preocupar, torna-se clara a necessidade de maior entendimento da questão.

No organismo humano já foram detectados vários componentes com padrão caótico, todos eles relacionados com o estado fisiológico, enquanto que as doenças se associam com o comportamento linear ou então aleatório, criando-se com isso a implicação de que os conceitos relacionados à Teoria do Caos podem ser estendidos aos binômios saúde-doença em “senso estrito” e a vida-morte, em “senso lato”. Nesse sentido, o caos teria conotação positiva refletindo a situação de Saúde, ou seja, o organismo preparado para responder favoravelmente às agressões do meio, dispondo para tanto de toda sua potencialidade. Uma vez perdida a situação de caos, a alteração progressiva da fisiologia levaria aos estados de doença pela da entropia, até a ocorrência do equilíbrio e conseqüentemente a morte.

A aceitação e aplicação desses conceitos na Medicina permitem prever algumas implicações futuras.
Novas linhas de pesquisa altamente produtivas deverão ser desenvolvidas procurando extrair desse terreno, ainda pouco explorado, conhecimentos que venham auxiliar no entendimento do organismo humano em toda sua complexidade.

Como corolário, as habilidades no terreno da matemática, o conhecimento do comportamento dos sistemas dinâmicos e das funções não-lineares e a aplicação de técnicas no domínio do caos, entre outras, deverão ser estimuladas em vista da necessidade de entender mais completamente a fisiologia dos sistemas orgânicos.

Do ponto de vista clínico, em face da ação da dinâmica não-linear, será imprudente atribuir uma causa específica a um determinado efeito sabendo que nos sistemas dinâmicos deterministicos não-lineares, as influências são sempre multifatoriais. Isso trará também implicações referentes aos métodos estatísticos utilizados, fazendo com que a análise multivariável ganhe preponderância nos trabalhos científicos.

É provável que no futuro as intervenções terapêuticas sejam dirigidas à redução das interações múltiplas não lineares esperando-se que apenas mínimas alterações muitas vezes já sejam suficientes para grandes resultados benéficos.

Medicamentos, dispositivos e equipamentos deverão sofrer um processo de reengenharia visando adaptá-los ao comportamento caótico. Drogas com absorção ou distribuição não-linear, permitindo concentrações variáveis ao invés de níveis fixos; respiradores ou aparelhos de marcapasso atendendo às leis do caos, entre outros, seriam algumas das conseqüências previsíveis.

A Medicina Baseada em Evidências deverá receber um redirecionamento com enfoque muito maior no indivíduo do que na população, reforçando a prática médica como arte e ciência.

Outras implicações certamente surgirão. Espero que este ensaio contribua para uma mudança de conceitos, quando a caoplexidade, neologismo criado por John Horgan em “O fim da ciência”, virá a ser o novo paradigma do pensamento científico.

* Moacir Fernandes de Godoy é médico cardiologista e professor adjunto na Faculdade de Medicina de S. José do Rio Preto (Fanerp), com Tese de Livre Docência sobre o tema "A Teoria do Caos Aplicada à Medicina"


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