CAPA
PONTO DE PARTIDA
Destaques: entrevista c/Ennio Candotti e debate sobre Gestão em Saúde
ENTREVISTA
Ennio Candotti, presidente da SBPC
CRÔNICA
Cláudia Monteiro de Castro
SINTONIA
Slavoj Zizek
BIOÉTICA
Doadores de sêmen devem ser identificados?
DEBATE
O perfil da assistência à saúde no país
COM A PALAVRA
O SUS na percepção do acadêmico de Medicina
CONJUNTURA
Tuberculose. A epidemia através dos anos
MÉDICO EM FOCO
Equipes de médicos salvam nas estradas
HISTÓRIA DA MEDICINA
A história da Faculdade de Medicina paulista
CULTURA
O médico e sua arte: a fotografia
LIVRO DE CABECEIRA
Dicas: pequenas grandes histórias, fantasia e autobiografia
GALERIA DE FOTOS
CONJUNTURA
Tuberculose. A epidemia através dos anos
O LEDO ENGANO DE KOCH
Luiz Jacintho da Silva*
Quando Robert Koch anunciou a descoberta do Mycobacterium tuberculosis, em 1882, noticiou também o breve fim da tuberculose. Ledo engano. A doença continua grassando endemicamente em todo o mundo, ainda que com intensidade e características epidemiológicas diferentes.
Em São Paulo, o número de casos novos mantém-se razoavelmente estável ao longo da última década, aumentando a letalidade. Dos cerca de 18 mil novos casos anuais no Estado, aproximadamente um terço ocorrem no município de São Paulo. A incidência é claramente maior, uma vez que a população da Capital representa cerca de um quarto da população do Estado. Compreensível.
A tuberculose, desnecessário frisar, é uma doença com determinantes sociais evidentes. Ainda que uma análise superficial possa reduzir esses determinantes ao denominador comum da pobreza, essa é uma simplificação, que não conduz à solução do problema.
Se nos tempos de Koch a tuberculose era fruto da revolução industrial, incidindo preferencialmente sobre o proletariado urbano europeu e americano, vitimando crianças e adultos, hoje a situação é diferente. A melhora das condições de trabalho nas indústrias, assim como o fato de ter sido coibido o trabalho infantil, contribuíram para a redução da tuberculose ao longo do século 20, antes mesmo da introdução de medidas como a vacinação com o BCG e a quimioterapia eficaz.
A tuberculose apresenta perfis epidemiológicos variados em diferentes partes do mundo. Na segunda metade do século 20, principalmente depois que o esquema quimioterápico curto se tornou disponível, no início da década de 1970, a maioria dos países desenvolvidos entendeu que o fim da tuberculose estava próximo. A transição da sociedade industrial para a sociedade pós-industrial, que trouxe consigo a globalização, criou novas categorias de marginalizados. Os sem-teto tornaram-se um fenômeno mundial, juntamente com os usuários de drogas.
Concomitantemente ocorreram dois fatos no contexto sanitário, o surgimento e disseminação da Aids e o fechamento dos grandes hospitais psiquiátricos, nem sempre acompanhado da necessária e suficiente criação de alternativas para abrigar um expressivo contingente de pacientes crônicos de difícil absorção pela sociedade.
Esses fatores, em muitos países acrescidos de crises econômicas com estagnação do PIB e desemprego, formaram um novo caldo de cultura para o M.tuberculosis, assumindo o papel do proletariado industrial do século 19 e primeira metade do século 20. O resultado dessa transição econômica e social foi, entre outros, o ressurgimento da tuberculose nos países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Hoje, o grande, mas não único, problema do controle da tuberculose nos grandes centros urbanos é a existência de um expressivo segmento de marginalizados, com inadequado acesso aos serviços de saúde e refratários à disciplina necessária para o sucesso do tratamento, que tem duração de seis meses. Diferentes organizações de saúde, governamentais ou não, têm buscado em todo o mundo, alternativas efetivas para conseguir acesso a esses segmentos e a sua aderência ao tratamento, sem o que há o risco real do surgimento de cepas multirresistentes do M.tuberculosis, um problema que já parece fugir do controle em alguns países do mundo.
O desenvolvimento do esquema DOTS (Directly Observed Treatment Short-course) conhecido como tratamento supervisionado é apenas parte da solução, uma vez que ainda falta atingir segmentos sociais avessos à norma social, particularmente ao Estado.
Criatividade é a palavra de ordem. Criatividade para conseguir cooptar esses segmentos, criatividade essa que deverá trazer alternativas especialmente adaptadas para cada situação e momento. Alternativas estas que deverão ser cuidadosamente acompanhadas para que não apresentem resultados insignificantes ou se tornem inadequadas pelos usos e costumes da sociedade. Oferecer atrativos para obter a aderência desses segmentos marginalizados e de alto risco de tuberculose é uma opção, mas que não deve ser vista como panacéia. A experiência contemporânea com o controle da tuberculose mostrou que não existem soluções universais e eternas. A contínua observação da sociedade e a constante avaliação das medidas implantadas é uma das chaves do sucesso. O controle da tuberculose é factível, mas com certeza demorará e demandará um custo e uma dedicação expressivos.
*Luiz Jacintho da Silva é professor titular da Disciplina de DoençasTransmissíveis do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e Superintendente da Sucen — Superintendência do Controle de Endemias da Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo SP.
Foto (Osmar Bustos): pátio interno do Instituto Clemente Ferreira, centro de referência da tuberculose no Estado