CAPA
PONTO DE PARTIDA
Destaques: entrevista c/Ennio Candotti e debate sobre Gestão em Saúde
ENTREVISTA
Ennio Candotti, presidente da SBPC
CRÔNICA
Cláudia Monteiro de Castro
SINTONIA
Slavoj Zizek
BIOÉTICA
Doadores de sêmen devem ser identificados?
DEBATE
O perfil da assistência à saúde no país
COM A PALAVRA
O SUS na percepção do acadêmico de Medicina
CONJUNTURA
Tuberculose. A epidemia através dos anos
MÉDICO EM FOCO
Equipes de médicos salvam nas estradas
HISTÓRIA DA MEDICINA
A história da Faculdade de Medicina paulista
CULTURA
O médico e sua arte: a fotografia
LIVRO DE CABECEIRA
Dicas: pequenas grandes histórias, fantasia e autobiografia
GALERIA DE FOTOS
COM A PALAVRA
O SUS na percepção do acadêmico de Medicina
VER PARA CRER
ESTÁGIOS NA REALIDADE DO SUS
Ademir Lopes Junior*
A saúde, assim como a educação, é um direito social para o qual não basta construir prédios e máquinas. São necessários profissionais competentes, mas também conscientes e que atuem como agentes sociais em defesa da vida. Foi a partir desse princípio que as entidades de estudantes da área e o Ministério da Saúde propuseram a construção do projeto de Vivência e Estágio na Realidade do SUS (Ver-SUS). Como o próprio nome revela, o estágio propõe a aproximação dos estudantes aos desafios para a implantação do SUS no país. Além disso, pretende contribuir com o debate sobre a mudança do projeto político-pedagógico dos cursos da área de saúde, porque, apesar da proposta de integralidade, universalidade e hierarquização da atenção que o SUS propõe, poucos são os profissionais aptos a trabalhar nesse sistema.
Em março deste ano, participei do Projeto Piloto do Ver-SUS, realizado em dez cidades do país. Em 10 dias de programa, nós estudantes pudemos aprender, discutir e refletir sobre o controle social, o processo de municipalização, a educação popular, o trabalho interdisciplinar, a formação em saúde, os princípios e funcionamento do SUS, a reforma sanitária e, além disso, a saúde como direito social. Longe de avaliar o sistema dessas cidades ou aprender suas minúcias, nosso objetivo era discutir os desafios a partir da vivência no SUS real, como parte de um processo transformador dos estudantes, dos cursos e dos futuros profissionais.
Minha vivência foi em Vitória da Conquista, onde pude conhecer todos os níveis de atenção na zona urbana e rural, conversar com gestores, usuários e profissionais da saúde; visitando desde o laboratório central até os projetos de atenção à criança e ao idoso. Também foi possível observar que o trabalho interdisciplinar é fundamental e não se restringe ao encaminhamento de um profissional para o outro. É um diálogo permanente no qual todos aprendem, planejam e decidem conjuntamente. Nesse processo, os limites entre a ação de um e outro profissional tornam-se cada vez mais escassos - a responsabilidade pelo paciente não é só do médico, é da equipe.
Ao visitar o Centro de Atendimento Psicológico de Álcool e Drogas, verifiquei que a interdisciplinaridade com a qual sonho é possível na prática. Quando uma equipe realmente cuida da saúde da população, ela própria pode ser fator desencadeante da mobilização social, como vi acontecer em uma das unidades básicas. Também foi fascinante analisar a epidemiologia, os gastos – antes e depois do processo de municipalização e da implantação da auditoria – e constatar que é possível racionalizar e otimizar os recursos da saúde.
Mas nem tudo é maravilha. A contra-referência no sistema era algo que definitivamente não existia. Em praticamente todos os demais serviços que visitamos não havia trabalho de equipe. O médico, aliás, era o que menos participava das equipes interdisciplinares, em qualquer um dos níveis de atendimento. Em contrapartida, os outros profissionais também “não faziam muita questão” de ter um médico na equipe. Quanto maior a ligação do profissional com a comunidade, principalmente com as pessoas de baixa renda, maior era a satisfação com seu trabalho. E os agentes comunitários e os auxiliares de enfermagem eram muito mais comprometidos e satisfeitos do que os médicos. Em algumas regiões do Programa de Saúde da Família na zona rural, a estrutura física para o atendimento era tão deficiente que não tinha onde lavar as mãos. Apesar das dificuldades, os profissionais mais conscientes não sentavam e ficavam reclamando do governo.
Um dos médicos que conheci, ao verificar que não havia um consultório adequado nas zonas mais distantes, procurou estudar e propor à secretaria de saúde um consultório móvel com maca portátil e lavabo, condições mínimas para um atendimento adequado. Ninguém considerou essa alternativa ideal ou final, mas todos reconheceram estar num processo que previa a ampliação do número de unidades básicas, dos profissionais de saúde e das políticas intersetoriais. Infelizmente, esse médico não era representativo da maioria dos profissionais da cidade.
Essa experiência deixou evidente que nossa formação, no que tange ao comprometimento e reflexão social, está anos-luz das necessidades reais. Os currículos de todas as áreas da saúde pouco se preocupam com o subjetivo sócio-cultural do processo saúde-doença – e quando dizem se preocupar, atuam apenas no campo psicológico além do orgânico. A análise da dinâmica social e dos valores culturais inexiste nos atuais currículos – quanto mais trabalhar com o subjetivo dos estudantes para formar agentes sociais!
Aliás, até existem aulas teóricas sobre “cidadania” e “medicina social”, mas as expectativas desaparecem quando o estudante vai para o hospital “realmente aprender a medicina”. Ali, ele observa profissionais passivos, ausentes e não muito mais comprometidos do que diagnosticar e tratar a doença. Como se não bastasse, os próprios professores titulares, também funcionários públicos, pouco comparecem às suas aulas. Esse é o exemplo seguido e o aprendizado real dos futuros médicos. Isso não isenta o Governo, mas os estudantes, professores e demais profissionais da área também têm parte de responsabilidade pelo mau atendimento.
Apesar das dificuldades, retornei de Vitória da Conquista com esperanças renovadas. Somei mais uma experiência em minha vida que irá colaborar para a transformação curricular de minha faculdade, para criar iniciativas de diálogo entre a sociedade e a academia na minha região e para que eu seja um agente social. Pelo menos é o que eu espero. É ver para crer.
*Ademir Lopes Junior é estudante do quarto ano da Faculdade de Medicina da USP
Foto: Osmar Bustos