CAPA
PONTO DE PARTIDA
Destaques: entrevista c/Ennio Candotti e debate sobre Gestão em Saúde
ENTREVISTA
Ennio Candotti, presidente da SBPC
CRÔNICA
Cláudia Monteiro de Castro
SINTONIA
Slavoj Zizek
BIOÉTICA
Doadores de sêmen devem ser identificados?
DEBATE
O perfil da assistência à saúde no país
COM A PALAVRA
O SUS na percepção do acadêmico de Medicina
CONJUNTURA
Tuberculose. A epidemia através dos anos
MÉDICO EM FOCO
Equipes de médicos salvam nas estradas
HISTÓRIA DA MEDICINA
A história da Faculdade de Medicina paulista
CULTURA
O médico e sua arte: a fotografia
LIVRO DE CABECEIRA
Dicas: pequenas grandes histórias, fantasia e autobiografia
GALERIA DE FOTOS
BIOÉTICA
Doadores de sêmen devem ser identificados?
IDENTIFICAÇÃO DOS DOADORES DE SÊMEN: DIREITOS EM CONFLITO
O governo britânico prepara uma lei que torna obrigatória a identificação de doadores de sêmen no país a partir de 2005. A ministra da Saúde da Inglaterra, Melanie Johnson, defende o direito de as pessoas conhecerem sua origem biológica. Outro argumento favorável é de que a identificação evitaria o casamento de consangüíneos. O fim do anonimato pode, inadvertidamente, desestimular as doações, embora os países escandinavos que têm leis nesse sentido não tenham registrado fuga significativa de voluntários. Há mais de cinco anos o governo britânico discute a revisão da lei do anonimato.
O debate sobre o assunto mobiliza a sociedade. A Rede BBC de Notícias também produz há anos uma série de matérias e serviços sobre o tema, inclusive disponibilizou um e-mail para cooptar as notícias com a seguinte mensagem: “se você for uma criança nascida de esperma doado e quer buscar seu pai envie um e-mail para nós. A BBC tentará divulgar o máximo possível seus comentários, mas não garante que todos os e-mails serão publicados e se reserva o direito a editá-los”.
Em 2002, o doador Ben Shepherd, de 21 anos, declarou à BBC que “ficaria feliz em ser identificado” se uma pessoa o procurasse no futuro. “Estou dando aos casais a oportunidade de constituir família”, afirmou. Em janeiro deste ano, a rede de notícias entrevistou outro doador, identificado apenas como Nick, de 29 anos. Na época em que era estudante, Nick fez duas doações ao banco de sêmen e recebeu cerca de 12 libras por cada uma delas. “Minha decisão não foi altruísta. Eu fiz isso apenas por dinheiro para comprar cerveja”. Ele disse que não teria doado se pudesse ser identificado posteriormente.
A BBC ainda entrevistou, em 2002, um casal suíço que resolveu fazer inseminação na Dinamarca, onde vale o anonimato para o doador. Também baseada no direito de as crianças conhecerem os pais biológicos, desde 1985 a Suíça não tem mais doação anônima. Em 2002, a agência de notícias France Presse entrevistou uma jovem norte-americana, identificada como Claire. Em 1983, o banco de esperma da Califórnia, usado por sua mãe, introduziu o primeiro programa que permite que crianças conheçam a identidade do doador quando completam 18 anos. Claire foi a primeira a se beneficiar do programa e, no seu aniversário, recebeu um pacote com o nome, endereço e até uma fotografia de seu pai biológico. Ela, que esperava a atenção da mídia diminuir para entrar em contato com ele, fez algumas declarações a respeito:
“Não sei se pareço com ele. Acho que pareço com minha mãe (...) Eu tento ser realista, vejo os pais de meus amigos e ninguém é perfeito. Ele pode me decepcionar ou eu posso decepecioná-lo. (...) Quero conhecer, porque ele é a metade da minha herança genética e uma parte da minha vida sobre a qual não tenho conhecimento. (...) Seria interessante se ele tivesse uma família. Espero que sua família o apóie. Se não for assim, seria desconfortável e influenciaria nosso encontro. Se eles não quiserem um contato mais detalhado, então, que assim seja”.
Pela política do banco de esperma da Califórnia, os homens podem optar por doação anônima ou não. Os que dizem sim, podem mudar de idéia depois. Mas os doadores não têm direitos sobre a criança e, conseqüentemente, nenhuma responsabilidade legal. “Fizemos pesquisas com nossas crianças mais velhas e descobrimos que elas não estavam procurando um pai perdido há muito tempo, mas só curiosos sobre seus genes e qual era sua aparência física. O máximo que queriam era a amizade”, declarou Maura Riorden, diretora executiva do banco da Califórnia, à France Presse.
No Brasil
No Brasil, não há lei específica sobre o assunto, mas a Resolução CFM 1.358/92 prevê o sigilo sobre a identidade do doador, que só poderá ser aberto em situações especiais, exclusivamente para médicos. Segundo a Resolução, além do consentimento informado de pacientes inférteis e doadores, “as informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico, ético e econômico”. Também diz que os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa. Prevê ainda que “na região de localização da unidade, o registro das gestações evitará que um doador tenha produzido mais que duas gestações, de sexos diferentes, numa área de um milhão de habitantes.”
O Código Civil faz referência à inseminação artificial no artigo 1.597: “presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.” Em relação aos filhos adotivos, o Código Civil privilegia a relação sócio-afetiva e põe limites às ações de contestação de paternidade. De acordo com o artigo 1.614, aquele que foi reconhecido como filho enquanto era menor de idade “pode impugnar o reconheci-mento” apenas “nos quatro anos que se seguirem à maioridade, ou à emancipação”.
Evitar o casamento de consangüíneos e garantir o direito de uma pessoa de saber quem é seu pai biológico são argumentos sustentáveis para permitir a identificação de doadores?
“Em um primeiro momento, vejo mais desvantagens. Se pensarmos nos riscos e benefícios, pode trazer conseqüências de ordem jurídica como ações judiciais de pedidos de pensão ou heranças. Alegar o direito de saber quem é o pai biológico é um endeusamento da biologia; é valorizar o laço biológico, quando ele tem cada vez menos importância. Quem é o pai? O sujeito que cria com amor e carinho ou aquele que, por motivos que desconhecemos, resolveu doar um pouco de sêmem? A identificação dos doadores fará com que ninguém mais queira doar.”
MARCO SEGRE
Titular aposentado de Bioética da FMUSP e ex-conselheiro do Cremesp
“Ao pensar no benefício que representa aos casais que querem ter filhos, acredito que o sigilo deve ser mantido, ou ninguém mais vai querer ser doador. A Resolução do CFM prevê que não se pode utilizar o sêmem do mesmo doador mais de duas vezes numa determinada área. A possibilidade de casamento de consangüíneos é remota e não é maior do que a entre parentes gerados por relação sexual. Quanto ao direito de a pessoa saber quem é seu pai biológico, a forma como se faz inseminação hoje no Brasil não impede que isso seja possível no futuro. O laboratório ou clínica têm de preservar, sob sigilo, a identidade do doador. Se algum dia um juiz solicitar essa identificação, o médico pode consultar o Conselho de Medicina se deve ou não abrir o seu sigilo médico”.
NILSON DONADIO
Presidente da Comissão de Laparoscopia da Febrasgo, ex-presidente da Comissão de Reprodução Assistida e responsável pelo procedimento que gerou o primeiro bebê de proveta do Brasil
“A proposta de Lei da Inglaterra não é boa, mas o argumento de alguns de que pode trazer ações judiciais aos doadores de sêmem também não o é. O Código Civil considera que o registro civil, quando se trata de relação heteróloga com pai afetivo, é imutável, irrevogável e imprescritível, pelo princípio de igualdade dos filhos, portanto sem os maus efeitos que se colocam. Quando se trata de menor que não tem pai, o direito dele é definitivo. Porém, se ele não reivindica o conhecimento do pai nos quatro anos seguintes à maioridade, o direito à retificação do registro se extingue. Ora, se na adoção e no assento feito por pai não biológico, a lei exclui a possibilidade de retificação do registro civil, o mesmo princípio deve ser aplicado para o casal que tem um filho por reprodução heteróloga”.
WALTER CENEVIVA
Jurista e advogado, colunista do jornal Folha de São Paulo
“O problema maior é que o Brasil faz bebê de proveta desde 1982 e não tem lei nenhuma sobre o assunto. Isso é um indicativo de que o tema precisa ser exaustivamente debatido, técnica, moral e juridicamente no país. Em princípio, as duas argumentações têm fundamento lógico e sólido. Um é moral e o outro é biológico. Acredito que o sujeito desse processo deve ser sempre o ser humano, nunca poderá ser a clínica de inseminação ou as técnicas reprodutivas. Sobre o casamento de consagüineos, o uso do sêmem de um mesmo doador não mais do que em duas mulheres, previsto na Resolução do CFM, é válido, mas é frágil, pois não elimina o risco.”
VOLNEY GARRAFA
Presidente da Sociedade Brasileira de Bioética
“Sou favorável à Resolução 1.358 do CFM, de cuja elaboração eu participei. Ela diminui o risco de casamentos consagüíneos, embora não os elimine totalmente. Também prevê o anonimato, mas os dados do doador devem ser preservados e mantidos em sigilo, caso seja necessário procurar uma doença que tenha relação com a ancestralidade no futuro. Tornar a identificação do doador obrigatória seria um desestímulo à doação. É preciso contrabalançar os argumentos. Quantas pessoas serão beneficiadas pela quebra do anonimato em nome do direito da pessoa que vai nascer? Acredito que o número de prejudicadas será maior do que a de beneficiadas. Por enquanto, acho importante preservar o anonimato, mas, no futuro talvez seja preciso chegar a um consenso que contemple mais satisfatoriamente as várias correntes. Como solução intermediária penso que aquele doador que quiser ter sua identidade revelada, pode tê-la. Mas o receptor também tem de saber que o trato é esse”.
GABRIEL OSELKA
Pediatra, diretor do Centro de Bioética do Cremesp
“As soluções são boas, mas podem trazer mais problemas do que aqueles que se pretende evitar, podendo gerar uma série de situações constrangedoras. No afã de salvaguardar determinados direitos de alguns, não se pode deixar de preservar os de outros”.
ERIKSON MARQUES
Advogado, membro da Comissão de Bioética da OAB
* Imagem: Osmar Bustos