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CAPA

PONTO DE PARTIDA
Destaques: entrevista c/Ennio Candotti e debate sobre Gestão em Saúde


ENTREVISTA
Ennio Candotti, presidente da SBPC


CRÔNICA
Cláudia Monteiro de Castro


SINTONIA
Slavoj Zizek


BIOÉTICA
Doadores de sêmen devem ser identificados?


DEBATE
O perfil da assistência à saúde no país


COM A PALAVRA
O SUS na percepção do acadêmico de Medicina


CONJUNTURA
Tuberculose. A epidemia através dos anos


MÉDICO EM FOCO
Equipes de médicos salvam nas estradas


HISTÓRIA DA MEDICINA
A história da Faculdade de Medicina paulista


CULTURA
O médico e sua arte: a fotografia


LIVRO DE CABECEIRA
Dicas: pequenas grandes histórias, fantasia e autobiografia


GALERIA DE FOTOS


Edição 27 - Abril/Maio/Junho de 2004

ENTREVISTA

Ennio Candotti, presidente da SBPC

“A idéia de que o sistema capitalista tenha derrotado a alternativa socialista exige, ainda, prova de que o capitalismo tenha respostas para os problemas que o socialismo colocava.”

O físico Ennio Candotti voltou à presidência da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) dez anos depois de ter deixado o cargo que ocupou por dois mandatos consecutivos, entre 1989 e 1993. Professor da Universidade Federal do Espírito Santo, ele ocupa lugar cativo entre as mais importantes personalidades científicas do país, inclusive ganhou o Prêmio Kalinga da Unesco para a Popularização da Ciência. Candotti concedeu entrevista aos conselheiros do Cremesp Ieda Therezinha Verreschi do Nascimento, Luiz Carlos Aiex Alves e Jorge Carlos Machado Curi. Com seu estilo moderado, mas nem por isso menos polêmico, critica o modelo universitário do país e defende mudanças profundas e radicais no ensino superior. Também fala de política, utopias, biotecnologia e até de Carnaval.


SER MÉDICO.
O site da SBPC deixa a impressão de que nos anos 60 e 70 ela teve um maior florescimento do que atualmente.
CANDOTI.
Talvez a SBPC não tenha dado importância em colocar as coisas no site. Ele está desatualizado, mas estamos cuidando disso agora, porque a internet significa geração e instrumento de trabalho. Nos anos 60, a SBPC reunia no máximo quatro mil pessoas. Hoje, nas últimas reuniões foram de 15 a 20 mil. O mais interessante é que reúne cerca de 60 ou 70 sociedades científicas afiliadas, que se encontram periodicamente em São Paulo, na sede, para tratar questões do crescimento da comunidade. Há 10 ou 15 anos, formavam-se mil doutores ou especialistas por ano nas áreas de ciências naturais, sociais e médicas; hoje formamos sete mil. Mas nem todos estão empregados, isso é um fato.

Enfim, cresceu um bocado, não alcançamos os números familiares à Medicina, porque a nossa não é uma associação profissional, as adesões são abertas, qualquer um pode se associar. Há mais de sete mil sócios ativos, de um total de 40 a 50 mil que passaram pela SBPC desde 1948. Hoje temos representação no Congresso Nacional, regionais em 10 ou 15 Estados e há um histórico de batalhas em torno das Fundações de Apoio a Pesquisa, com sucessos e insucessos, pois nem todas funcionam. A participação ativa do Ministério de Ciência e Tecnologia na agenda política nacional é resultado, não digo da SBPC, mas de uma ação sistemática nesses últimos 20 anos.

SER. As entidades representativas dos médicos preparam uma campanha para impedir a abertura de novos cursos de Medicina, principalmente em São Paulo. Como o senhor, que é ligado ao ensino, vê a posição de uma categoria profissional contra a sua atividade como defensor das faculdades?
CANDOTI.
Há dois conceitos em jogo. Primeiro, o da deterioração da qualidade dos cursos universitários. Todos estamos preocupados e dispostos a evitar esse crescimento. Mas também vejo uma outra vertente: as nossas comunidades são muito conservadoras e vêem com ressalvas o nascimento de novas idéias, de áreas interdisciplinares e de funções sociais diferentes. Não estamos conseguindo oferecer novas opções aos jovens. Existe um mundo infinito de áreas multidisciplinares que gostariam de se aproximar da Ciência. A física médica, por exemplo, é uma área de interação entre a medicina e a física muito pouco explorada. Por timidez, conservadorismo, falta de pressão, de solicitação e até mesmo interação de demandas.

O Brasil precisa de muitos médicos e de outros profissionais de nível superior, mas tem dificuldade em distribuí-los. A organização dos sistemas de uso das competências das pessoas não encontra equilíbrio que possa satisfazer as inquietações dos jovens. Temos muito a fazer preservando a cautela na criação de novos cursos, mas sem inibir a possibilidade de criar novas disciplinas, especialidades ou áreas multidisciplinares. Ao invés de não abrir novos cursos, vamos abrir nessa direção, porque sempre apresentamos as mesmas opções de vestibular: médico, biólogo, físico etc. Depois, os meninos entram lá e se perguntam: “o que eu vou fazer com isso?” Há uma razão santa para evitar que apareçam faculdades de Medicina sem a menor condição de oferecer instrução confiável, mas isso deveria nos alertar para inventar novos caminhos, novos currículos. E a Medicina é fantástica.

SER. A SBPC deixou de ser uma instituição que congregava todo mundo da Ciência, como nos anos 60. Desgastou-se em decorrência do posicionamento político e os avanços tecnológicos estimularam o aparecimento de sociedades menores, fortalecidas cientificamente, mas separadas em seus pequenos feudos...
CANDOTI.
Houve um período em que a SBPC era a grande mãe. A partir da década de 80, começaram as atividades específicas em separado. Ainda há muito para se fazer juntos, mas os grupos tendem a se fechar e preservar aquilo que fazem bem, vendo com certa desconfiança os novos rumos. Essas novas possibilidades têm necessidade de uma discussão séria sobre questões éticas, práticas, de prioridades para acompanhar os tempos e usar bem os recursos. Tenho impressão que nos próximos anos viveremos um período de reaproximação de outros temas, não mais nos profissionais, mas naqueles de definição de novas diretrizes. Estamos discutindo a reforma da universidade.

Qual será a reação dos profissionais da área médica se eu fizer a proposta de que no primeiro ano da universidade não deve haver a escolha entre medicina, física, química e biologia? Que a escolha se faria um ou dois anos depois? As experiências demonstram que isso não só é viável, mas permite uma grande economia, uma vez que quase 50% dos alunos, por erro de escolha, acabam voltando atrás. Eles ocuparam lugares que não precisavam ocupar. Há uma disputa por alunos, que criam formas de ingresso nas faculdades completamente artificiais.

SER. No fim dos anos 50, o médico se formava em seis anos e ia exercer a profissão. Hoje é praticamente obrigatório fazer Residência Médica de no mínimo dois anos, em algumas especialidades são quatro ou cinco anos. E, de algum tempo pra cá, exige-se mestrado e doutorado na área médica. Como o sr. vê isso num país com tantas dificuldades econômicas?
CANDOTI.
Novamente, vejo como um aspecto do nosso conservadorismo. Não vou falar especificamente da Medicina, mas do modelo de ensino: somos como a cebola, soltamos cascas sucessivas, não sabemos eliminar os supérfluos e acrescentamos o necessário. Imaginando que 30% do curso de Medicina seja absolutamente inútil, não poderíamos dar o essencial em menos tempo e oferecer melhores condições de prática, de estudo e de acesso a bibliografias infinitamente superiores às de 10 anos atrás? Depois da revolução da Internet, do acesso a enormes bancos de dados e bibliografias, não é possível manter o mesmo estilo de aulas e de exigências feitas há 20 ou 30 anos. Não acredito que seja preciso tanto tempo para formar um profissional em física ou engenharia, que ele precise acumular tanto saberes. Será que não dá para compactar? Não há meio de cortar alguma coisa, sem prejuízo depois para o doutorado ou mestrado? A Residência Médica não equivale a um mestrado ou doutorado?

SER. Hoje a tendência é estimular o mestrado, principalmente por aqueles alunos que durante a graduação fizeram iniciação científica. Teríamos que pensar na formação do aluno que entra, se há substrato para chegar até lá. Hoje lhes falta substrato humanístico, eles perderam a Filosofia. São pessoas treinadas para alguma atividade técnica e a carga de atividade prejudica a reflexão.
CANDOTI.
Isso chama a atenção porque os melhores alunos vão para a área médica. São alunos excepcionais. Ora, como é possível que depois saiam sem ter preservado essa riqueza? A Medicina é uma máquina de moer carne? O que é a Medicina? É o curso que pasteuriza os meninos? Deveríamos fazer um seminário para discutir o que está acontecendo. Por que estragamos os meninos? Não temos capacidade de oferecer a riqueza de opções que eles estão dispostos a seguir? Esses meninos chegam e fazem provas excepcionais, têm capacidade de aprender qualquer coisa e depois saem de lá e murcham.

SER. O senhor acha que acabaram-se as utopias?
CANDOTI.
Não, e a ideologia muito menos. Só mudaram de endereço. As utopias são eternas enquanto duram. A idéia de que o sistema capitalista tenha derrotado a alternativa socialista exige, ainda, prova de que o capitalismo tenha respostas para os problemas que o socialismo colocava. Como até agora não demonstrou, as perguntas continuam no ar e elas são históricas. É difícil pensar num declínio das utopias. O papel da memória da nossa própria história na construção do presente está por trás dessa idéia. Avalia as utopias que permanecem congeladas e as ideologias que estão mais propensas a se realizar.

SER. O senhor tem alguma?
CANDOTI.
Sim. Ainda acredito nos princípios de igualdade, de oportunidades e de participação. No caso da atrocidade do atentado de Madri, a resposta foi imediata, com a vitória da oposição. A resposta é ética. Eles se mobilizaram, oito milhões foram às ruas e disseram não ao terror, mas, ao mesmo tempo, não ao anti-terror forjado, ao terrorismo manipulado. Foi uma belíssima resposta, que mostra que a dignidade humana ainda está presente em nossos tempos. E acho que isso é comum em muitas partes.

SER. O senhor concorda com a teoria de choque de civilizações do historiador Samuel Huntington?
CANDOTI.
Não, mas concordo que a prepotência com que se tenta resolver a situação local corrói a possibilidade de paz. Por que um plano de paz em consenso com a ONU não foi executado na questão palestina? Não imagino que as questões do Oriente Médio tenham começado com a presença dos palestinos na Europa procurando ocupar Paris. Não começou por lá. Então, aquilo é um caldeirão de interesses de uma falsa fragilidade que tentam explorar de todas as maneiras.

SER. O que o senhor está achando do governo atual?
CANDOTI.
Ele despertou uma enorme esperança e, ao mesmo tempo, está mostrando que estas devem ser calçadas. Mas encontrar soluções para essas esperanças é complexo. Nossa sociedade ainda convive com a violência, com a necessidade e com uma aspiração de liberdade. Esses três níveis são quase que etapas sucessivas do crescimento e da formação de uma sociedade, paralisando muitas coisas na sociedade. Não pude deixar de registrar o meu espanto quando, na premiação das escolas de samba, o homenageado foi o Abrão David, que é o “Al Capone” do Rio de Janeiro. Ele tem processos por homicídio, é um contraventor conhecido e reconhecido, mas era o herói da jornada na televisão. Assim como o Castor de Andrade, que vi desfilar e foi aplaudidíssimo.

SER.Isso talvez faça parte do fenômeno barroco que é o Carnaval e que traz consigo essas distorções. Mas trouxe também o DNA, que era um homenageado. Não foram só os delinqüentes...
CANDOTI.
Eu me considero tio-avô desse DNA, porque foi gestado na Casa da Ciência da Universidade Federal do Rio de Janeiro, por um grupo que vi crescer em torno da divulgação da ciência. Foi uma belíssima obra de criação, envolvendo divulgadores da ciência e carnavalescos.

SER. Qual é a sua posição sobre a biotecnologia?
CANDOTI.
Minha posição coincide com a da SBPC. A pesquisa científica deve ser não apenas liberada, mas incentivada. No entanto, a comercialização é uma outra etapa. Inclusive, a liberação da pesquisa de campo deveria ser muito flexível, considerando que são os primeiros anos das experiências. Já a comercialização é uma questão não apenas técnica, mas também ética, política e de interesses, como todas as aplicações tecnológicas em grande escala. Os problemas técnicos ainda existem. Os limites e os riscos da utilização da transgenia daqui a 10 anos ainda não estão claros.

Dentro de 50 ou 100 anos esses exemplos serão pré-históricos, mas ainda não sabemos quais são os efeitos desses produtos em regiões como a nossa. Eles são testados em determinadas regiões, mas em outras podem dar resultados diferentes. Não há protocolos claros. É salutar que se tome certo cuidado, avaliando as questões políticas e comerciais, caso a técnica seja superada. Também não creio que os órgãos ambientais e o Ministério da Saúde sejam primores de eficiência na capacidade de execução de medidas. Muitas vezes misturam seus pontos de vista na avaliação de risco. Há sempre possibilidade de encontrar o risco e valorizá-lo. Mas não temos 100% de certeza em nenhum momento e em nenhum caso.

SER. Neste momento, os transgênicos estariam sofrendo influência mais política do que técnica nas decisões?
CANDOTI.
Há uma influência econômica. Há fortes interesses na liberação e isso exige cautela, uma vez que não se conhece completamente suas conseqüências. Na velocidade, parece que querem dar uma única solução para todos os questionamentos. Mas tenho certeza que dentro de alguns anos isso será superado e nós aceitaremos os transgênicos.

SER. O problema, então, é transmitir mais segurança?
CANDOTI.
Eu acho que deveria haver mais cuidado, inclusive para dizer o que não se sabe. O que existe neste momento é falta de coragem dos que estão a favor para dizer o que eles não sabem. Primeiro, não existem transgênicos. Existe, caso a caso, uma porção de produtos. Segundo, não existe certeza. Dizer que não faz mal a ninguém... Calma. Não podemos melhorar a produtividade da soja por outros caminhos? Precisamos insistir nesses? Essa é a questão que está no ar.

SER. No uso terapêutico de células-tronco há também a preocupação com a proposta de um único caminho, de uma única forma de cura de patologias, assim como a dos trangênicos?
CANDOTI.
O que precipitou a crise dos transgênicos foi a vaca louca. Ao considerar essa carne comestível, os especialistas liberaram algo que não era conhecido ainda. Logo, se vaca louca matou, é possível que o milho transgênico também possa matar. Quem vai me garantir? Isso só pode ser superado pela eficiência. Quem será contrário ao feijão com proteína acrescida ou a salvar uma colheita de arroz que está ameaçada por uma praga? Nós aceitamos os agrotóxicos sem tanta celeuma. Claro que os agrotóxicos não são bons, mas é óbvio que, dada a situação, não teríamos condições ideais de alimentar as pessoas hoje. No caso das células-tronco, acho que é uma nova falsa fronteira que se estabelece – que dita que até aqui pode, até ali não pode, embrião sim, embrião não. Minha pergunta é se o conceito de ser humano na história não seria muito recente? Até pouco mais de 100 anos atrás, os negros e os índios não eram considerados seres humanos. Então, as células-tronco poderiam ser liberadas no caso dos negros e de não brancos?

SER. O investimento em ciência e tecnologia no Brasil é pequeno? Na esfera pública e privada, como poderíamos conseguir mais recursos, a exemplo de outros países?
CANDOTI.
Isso está ocorrendo de maneira desfavorável devido à competição internacional. Há 10 ou 15 anos não se imaginava que as empresas fossem investir em ciência e tecnologia, exceto na área de informática. Hoje há um crescimento da percepção de que ou se investe ou morre. É uma condição necessária à sobrevivência numa economia de mercado.

SER. O que poderia ser feito para que a área privada pudesse investir na universidade? A universidade está fechada? Ela deveria estar ligada à pesquisa mais prática, que poderia ser aplicada de forma imediata?
CANDOTI.
É um processo que já começamos. Mas a universidade deveria ser mais aberta e flexível na sua capacidade de formar gente mais atenta ao mundo em que vivemos. E o mundo em que vivemos deveria ter mais perguntas a fazer a universidade e receber respostas. As empresas têm perguntas para as quais não encontram respostas, mas deixam tudo como está, pois vivem atropeladas pelo dia-a-dia. Não há problema maior do que o consumo de massa e as garantias de controle sanitário, mas parece que estamos longe de explorar a importância disso numa vida em comunidade. Não se pode pensar que a vigilância sanitária é uma questão só médica. Vivemos uma época de reformulação de tudo. Não só na saída, dos produtos que devem ser oferecidos ao mercado, mas deve haver uma certa educação do próprio mercado e da sociedade que vive nesse pacto social. A cumplicidade e a discussão permitem uma avaliação ética muito interessante.

SER. A SBPC poderia fazer algo para apressar essa aproximação da universidade, das áreas de pesquisa e da sociedade?
CANDOTI.
A divulgação é chave para essa solução. Devemos todos nos empenhar em comunicar, em tornar transparente as decisões nas nossas áreas específicas de modo que possam encontrar problemas semelhantes e próximos. E, nesta proximidade, evitar o surgimento de monstruosidades, por conta de segredos. Evitar que as decisões sejam tomadas em corpos fechados, vale para os Conselhos, para a SBPC e para as universidades.

*Ennio Candotti é físico, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)

Foto: Osmar Bustos


 


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