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Edição 25 - Outubro/Novembro/Dezembro de 2003

SINTONIA 2

Entre Paris e a roça

Entre Paris e a roça

Carlos Alberto Pessoa Rosa*

Na época de faculdade, 1971 a 1976, encontrei um livro escondido em um buraco na parede, atrás de uma máquina offset, no Centro Acadêmico Manoel de Abreu, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, intitulado A Medicina Interior. Tratava-se da biografia de um jovem médico, dotado de vasta cultura que, sensível ao sofrimento do povo e consciente do descaso dos governos, opta por um exílio voluntário no Interior, segundo o prefácio de Baeta Vianna, catedrático de Química Biológica da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte - nome obscuro, sem fama literária e humilde, como ele mesmo faz questão de frisar.

Dr. Campanário, nome que já anuncia barulho, é autor-personagem do livro dedicado ao amigo Olavo Trindade, cirurgião, com quem divide as amarguras e os horrores da profissão na roça. Ao ler a obra e vasculhar a biografia de Manoel de Abreu, descobri no autor-personagem a oportunidade de conhecer as idéias e opiniões de uma época. Arriscaria afirmar que o Dr. Campanário e Manoel de Abreu são a mesma pessoa.

Em 4 de janeiro de 1892, nascia em São Paulo Manoel Dias de Abreu, filho da sorocabana Mercedes da Rocha Dias e Júlio Antunes de Abreu - que veio de Portugal com 13 anos para trabalhar em uma casa de tecidos em Recife. Em 1905, com 13 anos, é aprovado com distinção em todas as matérias na Faculdade de Direito de São Paulo. Não tendo idade para matricular-se, estuda com professores particulares na Europa entre 1906 e 1907. Em 1908, entra na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

Termina o curso em 1913 e, no ano seguinte, defende a tese de doutorado "Natureza Pobre", sobre influência do clima tropical na civilização, classificada, na época, como Estudo de Higiene Social. O próprio Abreu refere-se a ela como "fruto de um ímpeto; é a necessidade imperiosa de exprimir um pensamento, uma idéia, de uma feita. Não veio da fecunda paz espiritual; veio de grande tumulto íntimo. É uma torrente forte e breve. É quase bárbara, de tosca e mal feita!".

Em julho de 1914, segue com a família para a Europa. A guerra faz com que desembarque em Lisboa, conseguindo chegar a Paris no ano seguinte. Conhece escritores e filósofos que vão marcar sua personalidade. De um lado, Baudelaire, Quental, Pöe e Mallarmé; de outro, Nietzsche, Darwin, Pawlow e Koesteliew. "Minha fase científica não havia começado. O que me fascinava - escreveria anos depois - eram as sínteses gerais, onde eu pretendia encontrar a minha verdadeira vocação, o meu verdadeiro destino. Percorrendo os boulevards de Paris, cheguei à conclusão de que estava perdido numa floresta abstrata, na qual o nevoeiro apaga o contorno das idéias. Só havia uma solução: a ciência, a pesquisa científica".

Do contato com a medicina francesa no Nouvel Hôpital de la Pitié onde trabalha, "apenas para não dizer não" ao convite, até encontrar Guilleminot e aprimorar seu estudo da radiologia, surge a idéia da fluorografia em massa para o diagnóstico das afecções torácicas. O próximo passo seria trabalhar como assistente do chefe do Serviço de Radiologia do Hospital Laennec, entre 1917 e 1918.

Deixa Paris em 1922, chegando ao Rio de Janeiro. Sofre com barreiras e deficiências do país. Sua sensação inicial é a de estar em exílio, relembrando a leitura de Memórias da Casa dos Mortos, de Dostoievski, em que os "farrapos humanos, batidos pela adversidade, vacilavam sobre a neve das estepes". Transporta seu sofrimento ao personagem do livro A Medicina do Interior e o Dr. Campanário passa a ser porta-voz de suas dificuldades. "Tenho a impressão às vezes que estou em uma grande aldeia", diz em certo momento da narrativa.

A inquietude de Manoel de Abreu também nos brindou um outro livro -  este de poesias - magnífico, intitulado "Substância". Publicada em 1928, essa coletânea é toda ilustrada por Di Cavalcanti. O pintor modernista, aliás, fez um retrato precioso do autor para o livro (veja reprodução à pág. 17).

Por causa do pai doente, Abreu é obrigado a voltar uma vez mais à França. Retorna com o desejo claro de dar vazão ao gênio criador, retoma e consegue o objetivo de ajudar os tuberculosos desenvolvendo uma técnica de diagnóstico precoce. Casa-se em 1929 com Dulcie Evers. Amadurecido e amargurado, Manoel de Abreu, agora Dr. Campanário, faz algumas dissertações interessantes.

O ensino da época: entrar na faculdade é como haver "pisado a soleira das portas dum caos científico". O mestre, "sem orientação pedagógica, sem nenhuma diretriz lógica, sem um pingo de bom senso, às vezes gasta trinta minutos descrevendo o trajeto acidentado e caprichoso duma arteríola de importância secundária ou nula". Sua "finalidade máxima e única é mostrar aos discípulos que está senhor absoluto do assunto". No final, a missão do aluno "foi apenas a de, durante a chamada, dizer em voz alta: presente". E que "as teses deveriam versar sobre assuntos simples e fáceis".

Sobre a necessidade da especialidade e a fragmentação da medicina, propõe uma lei que exija o exercício de clínica geral durante dois anos antes da especialização. "Os grandes especialistas são aqueles que, depois de ficarem de posse de todos os conhecimentos científicos, referentes ao organismo inteiro, continuam a observar com mais atenção determinado departamento orgânico".

O médico "tem o dever de acompanhar a dolorosa trajetória da vida humana do início ao fim", sua opção é meter-se entre "as pontas da trajetória", o nascimento e a morte, da "semiótica obstétrica" ao túmulo. Quem não souber "receber a ingratidão com um sorriso" ou não se dominar ante a calúnia, insinuações dos ignorantes "não deverá jamais procurar a medicina como profissão". Daí serem muitos os diplomados, "mas há, contudo, poucos médicos".

A cirurgia na grande cidade "é uma arte-ciência", já no Interior "o médico luta com dificuldades infinitas e terríveis", exige-se do profissional "coragem, serenidade, altruísmo, resistência física etc". A roça "destroça o ânimo, aniquila o entusiasmo do médico, pondo no seu espírito o travo amargo das desilusões".

A pobreza: "como tratar o pobre se nunca poderá seguir o tratamento, a orientação de repouso e alimentar?"; como superar a dificuldade de tratar um matuto, homem "infeliz e desprezado", cuja "noção que ele tem da ciência médica é absolutamente vaga, confusa e errônea?".

A riqueza: os clientes ricos dividem-se "nos que não pagam, os que pagam quando lembrados e os que pagam. Os primeiros, elogiam quando o médico presta-lhes trabalho de incontestável valor; mas somente até serem cobrados, quando então esbravejam ofendidos. Os que pagam são aqueles que dirigem ao médico palavras com respeito, bondade e ponderação, são os únicos capazes de relevar as falhas, os deslizes ou erros do médico" e somente "em casos graves ou de extrema urgência chamam o médico às desoras".

O grau de desenvolvimento de uma civilização é o "adiantamento que seu povo tem no tocante a Assistência à Maternidade e Proteção à Infância", pouco importando "conhecer o número de submarinos e aeroplanos".
Sobre o aborto e o controle de natalidade, defende "o direito da criatura humana à vida em qualquer ponto da trajetória que vai do ovo até a morte". Sugere que seja criada uma figura jurídica relativa ao feto. Para ele, o aborto é um crime, justificado apenas se a vida da mãe periclita. Que "o Estado reconheça o direito que tem a mulher de não ter filhos e oficialize o ensino das práticas anticoncepcionais no país".

Manoel de Abreu foi um pensador e crítico mordaz de sua época. De volta ao país, procura seguir caminho contrário à maioria dos colegas que batiam à porta do Estado a fim de pedir os meios de vida concedidos a poucos no exercício exclusivo da profissão. Mergulhado em um cenário nada tranqüilo, em plena crise do café, com a pobreza migrando do campo para a cidade, Manoel de Abreu, na figura do Dr. Campanário, aponta que o homem da roça é um desassistido, diferente do homem da cidade. Mas não despreza o país onde vive ou se acomoda em ambições pessoais. Ele grita como o sino no campanário. Engaja-se na pesquisa de corpo e alma, segue os passos de Oswaldo Cruz e outros. Como eles, quer resolver os problemas brasileiros e para isso persegue uma técnica para fazer o diagnóstico precoce da tuberculose. Como todo gênio, enxerga além de sua época. E como!

Conseguiu transformar seu desassossego em ato criador - assim surgiu a abreugrafia - , escreveu poemas, romances e ensaios... Um tumor pulmonar, diagnosticado por ele mesmo, leva-o em 1962. Antes de partir deixa um recado:

"Não parto indiferente.
Eu amo a vida...
Ouço a voz misteriosa da separação,
o adeus da separação.
Procuro me iludir.
Meu ser empalidece no limite da própria sombra.
Ainda não, oh! abraço frio do depois e do jamais.
Ainda não.
Quero um pouco mais de ilusão, quero viver um pouco mais.
Oh! como te quero, doce aflição de viver,
doce aflição de viver!...

*Carlos Alberto Pessoa Rosa é médico-escritor, membro da Sociedade Brasileira de Cardiologia, Clínica Médica, Bioética e Sobrames-SP. Autor de "A cor e a textura de uma folha de papel em branco". Prêmio ficção nacional UBE/CEPE/1998. 


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