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Edição 25 - Outubro/Novembro/Dezembro de 2003

CRÔNICA

Ruy Castro*

Campeonato dos infalíveis

Ruy Castro*

Durante toda a vida, fomos ensinados a acreditar que havia duas coisas infalíveis no mundo: o Papa e a camisinha. O mito da infalibilidade de ambos era algo que nem se discutia - os dois simplesmente não falhavam, e ponto. O Papa, porque era o porta-voz de Jesus na Terra, numa longa linhagem que vinha desde São Pedro, lá nos primórdios. E a camisinha, por ser um obstáculo intransponível às aspirações de espermatozóides mal intencionados, dispostos a fecundar óvulos que não lhe diziam respeito. Cada qual em sua especialidade, o Papa e a camisinha fizeram jus às respectivas reputações e raramente deixaram na mão os milhões de fiéis que acreditaram neles.

Fiéis, eu disse? Sim, porque, nos dois casos, era também uma questão de fé. Tanto a infalibilidade do Papa quanto a da camisinha dependiam, em parte, da fé que depositamos neles. Um exército que partia para a guerra depois de abençoado pelo Papa tinha muito mais chance de vencer as batalhas se os soldados acreditassem na força daquela bênção. Ao mesmo tempo, um pênis equipado com uma camisinha também partia para a batalha armado de uma confiança que o tornava invencível se seu titular acreditasse na força daquela proteção. É claro que só a fé não era suficiente - ai do exército que não se preparasse para a guerra ou da camisinha que não caprichasse na qualidade da borracha. Mas o fato é que, através da história, o Papa e a camisinha deram muitas provas de sua infalibilidade: exércitos que tinham tudo para perder ganharam de virada, graças à bênção do Papa, ao passo que trilhões de espermatozóides assanhados bateram com o nariz no látex, graças à proteção da camisinha.
Durante séculos, as duas infalibilidades conviveram muito bem. O mundo era grande o suficiente para elas e uma não se metia na vida da outra. O Papa nunca discutiu a infalibilidade da camisinha e esta também nunca se interessou em questionar a infalibilidade do Papa. E, com isso, íamos vivendo.

Mas as duas instituições mudaram de função - e de importância - nos tempos modernos. Os papas deixaram de benzer exércitos e hoje se dedicam a atividades mais pacíficas. Já a camisinha deixou de servir apenas para evitar nenéns e, nas últimas décadas, ganhou um status heróico, ao se tornar o grande preventivo para a doença que passou a afligir a humanidade: a Aids. E este deve ter sido o problema. De repente, ficamos sabendo que, na opinião do Papa, a camisinha - ao contrário dele, Papa - não é infalível!

Com que, então, em pleno ano da graça de 2003, estamos assistindo à disputa de um campeonato de infalibilidades. E este não é um campeonato qualquer - envolve a vida de milhões, milhões de pessoas, principalmente na África e nos países católicos. Afinal, o Papa tem um púlpito do tamanho de uma praça, no Vaticano, que é repetido e amplificado nas praças de todas as cidades onde haja uma igreja. Quando o Papa diz alguma coisa, mesmo que seja pela voz de seus cardeais, metade da população mundial fica sabendo no ato. Já a camisinha, coitada, não fala e só pode se defender, muda, nas solidões a dois dos quartos escuros onde cumpre sua meritória tarefa. Por sorte, em seu nome falam os cientistas, para os quais ela é 90 por cento infalível, e seu abandono pelos casais seria uma catástrofe planetária.

Está bem, 90 por cento não são 100 por cento, mas quase chegam lá. Este é um campeonato perigoso para o Papa. Ao decretar que a camisinha não é infalível, ele pôs sua própria infalibilidade em jogo. Imagine se a camisinha parte para a revanche e recorda certos fatos melindrosos do passado, como aquele a respeito do Papa Urbano VIII, do século XVII, para quem era o Sol que girava em torno da Terra, e não o contrário, como pregava Galileu Galilei. Os séculos se passaram, surgiram os telescópios e os Papas subseqüentes tiveram de admitir que o Papa Urbano VIII errou feio. Para não falar em outros equívocos papais brabos ao longo da história. Donde o Papa é que não é infalível - e nunca errou tão feio quanto agora.

*Ruy Castro é escritor. Seus livros mais recentes são "Mau Humor - uma antologia definitiva de frases venenosas" (2002) e "Carnaval no fogo - crônica de uma cidade excitante demais" (2003), ambos pela Cia. Das Letras.


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