Consulta nº 22.538/17
Assunto: Comprovação da eficácia e reconhecimento científico do uso oftalmológico do colírio de atropina a 0,01% para o controle da progressão de miopia em crianças.
Relator: Conselheiro Adamo Lui Netto.
Ementa: O uso terapêutico do colírio de atropina para controle da progressão de miopia em crianças é reconhecido cientificamente e possui eficácia comprovada.
O consulente, Dr. A.D.R., Coordenador Médico do SAMU em cidade do interior de São Paulo, solicita parecer do CREMESP acerca das declarações do Secretário de Saúde da cidade, em um jornal local, sobre a colocação de médicos estrageiros do programa "Mais Médicos", do Governo Federal, junto ao SAMU.
PARECER
A Consulta foi encaminhada à Câmara Técnica de Oftalmologia do Cremesp que elaborou o seguinte parecer:
Globalmente, a miopia é a causa principal de perda visual para longe, afetando 1,4 bilhões ou 27% da população mundial, em 2010 [1]. O número de pessoas com miopia deverá continuar crescendo, tanto em número absoluto como em porcentagem da população. Em certos grupos etários, de muitos países asiáticos, a prevalência da miopia está acima de 80%. Atualmente, entre adolescentes e adultos jovens da Coreia, Taiwan e China, a prevalência da miopia está entre 84% e 97% [2-4]. Existem evidências de que o aumento da prevalência é acompanhado pelo aumento da intensidade da miopia [3]. Vitale e colaboradores [5], nos Estados Unidos da América (EUA), encontraram que a prevalência da miopia moderada (definida como entre -2,00 D e -7,90 D), praticamente dobrou (foi de 11,4%, em 1971-1972, para 22,4%, em 1999-2000) e a prevalência de alta miopia (definida como mais alta que -8.00 D), aumentou oito vezes durante o mesmo período (foi de 0,2% a 1,6%). A prevalência global da alta miopia (comumente definida como igual ou maior que -5,00D) era de 2,9% (224 milhões de pessoas) em 2010 [1].
A alta miopia está associada com aumento do risco de desenvolvimento de condições que ameaçam a visão, como a degeneração macular miópica, retinosquise, estafiloma posterior, glaucoma, descolamento de retina, e catarata [6,7]. A prevalência de perda visual por miopia patológica, nos estudos europeus, está entre 0,1% e 0,5% e, entre 0,2% e 1,4%, nos estudos asiáticos [7]. Yamada e colaboradores, em 2010, em estudo realizado com população japonesa, verificaram que 12,2% da deficiência visual foram causadas por miopia patológica [8]. A degeneração macular miópica foi a principal causa de cegueira monocular em Tajimi, Japão [9] e, atualmente, está liderando as novas causas de cegueira em Xangai, China [10].
Por todas estas razões, atualmente, a Organização Mundial de Saúde (OMS) elegeu a miopia como uma de suas cinco prioridades e a inseriu no programa "Iniciativa Global para eliminação da cegueira evitável" [11]. Além do impacto do custo da correção da miopia, há ainda o risco de perda visual por outras doenças oculares mais prevalentes nos míopes, como o glaucoma, catarata e descolamento de retina [6-11].
O Brasil, com 201 milhões de habitantes, tem a população míope estimada entre 22 e 72 milhões de indivíduos, e entre 2 e 7 milhões de pessoas com miopia degenerativa [12]. Sem intervenções para controlar o progresso da miopia, a prevalência da miopia patológica deverá continuar aumentando. Atualmente, sua prevalência global é da ordem de 3% e, uma proporção muito alta destas pessoas desenvolverão neovascularização coroidal miópica que é a causa principal de perda visual progressiva [7].
HISTÓRICO
A miopia manifesta-se na infância, mais comumente entre os 7-10 anos de idade e, tipicamente, progride por muitos anos [12-14]. A explosão global da incidência de miopia e, consequentemente, da miopia patológica e de suas complicações, têm contribuído para o desenvolvimento de estratégias eficazes e seguras para controlar a taxa de progressão da miopia [15].
No presente momento, estratégias farmacológicas que empregam bloqueadores colinérgicos muscarínicos têm sido mais efetivas no controle da progressão da miopia em crianças [14-19]. O uso tópico do colírio de atropina, um poderoso antagonista muscarínico, tem diminuído a taxa anual de progressão da miopia em crianças, em mais de 70% [14-19]. É clinicamente significante que o controle da progressão da miopia ocorra pela diminuição da taxa do alongamento ocular (comprimento axial) [14-19].
Chia e colaboradores [16] publicaram os resultados de cinco anos de tratamento de crianças com colírio de atropina para o controle da progressão da miopia. No estudo, as crianças usaram a atropina nas concentrações de 0,5%, 0,1%, e 0,01% durante dois anos, e após um ano de washout, voltaram a usar a atropina na concentração de 0,01% por mais dois anos. As crianças tratadas com a atropina nas concentrações de 0,5% e 0,1% apresentaram maior taxa de progressão da miopia no ano de washout (efeito rebote). As crianças que receberam atropina na concentração de 0,01% apresentaram menor efeito rebote durante o ano de washout, e manifestaram eficácia no controle da progressão da miopia nos dois anos de uso após o ano de washout, com marcada redução dos efeitos adversos que requereram, inclusive, o uso de lentes fotocromáticas enquanto o tratamento empregava as doses mais altas de atropina (0,5% e 0,1%). O controle da progressão da miopia reveste-se de notável importância clínica devido aos altos riscos de perda funcional da visão associada com a miopia patológica ou alta miopia [20].
SEGURANÇA DO MÉTODO
Huang e colaboradores [21], em 2016, publicaram meta-analise com o objetivo de investigar a eficácia e comparar a efetividade de 16 intervenções no controle da progressão da miopia em crianças. Os seus principais achados foram os seguintes:
1. Alta dose de atropina (1% e 0,5%), moderada dose de atropina (0,1%), e baixa dose de atropina (0,01%) mostraram efeitos claros no controle da miopia (todos estatisticamente significantes); pirenzepina, ortoceratologia, lentes de contato que modificam o defocus periférico, ciclopentolato e lentes oftálmicas bifocais prismáticas mostraram efeitos moderados (todos estatisticamente significantes, exceto para o ciclopentolato e lentes oftálmicas bifocais prismáticas); lentes oftálmicas progressivas, lentes oftálmicas bifocais, lentes oftálmicas que modificam o defocus periférico e mais atividades outdoor, mostraram efeitos fracos (somente lentes oftálmicas progressivas, apresentaram efeito estatisticamente significante); lentes de contato rígidas gas-permeáveis, lentes de contato gelatinosas, lentes oftálmicas hipocorrigidas, e timolol foram ineficazes (todas sem efeito estatiscamente significante).
2. Alta dose de atropina (1% e 0,5%) foi significantemente superior às outras intervenções exceto moderada dose de atropina (0,1%) e baixa dose de atropina (0,01%). Comparações pareadas entre lentes oftálmicas bifocais, ciclopentolato, mais atividades outdoor, ortoceratologia, lentes oftálmicas progressivas, lentes oftálmicas bifocais prismáticas, lentes de contato que modificam o defocus periférico, lentes oftálmicas que modificam o defocus periférico, e pirenzepina, não mostraram diferenças significantes, exceto o benefício da ortoceratologia sobre lentes oftálmicas progressivas. Lentes de contato rígidas gas-permeáveis lentes de contato gelatinosas, timolol, e lentes oftálmicas hipocorrigidas foram inferiores às outras intervenções, sem diferenças significativas dentro deste grupo.
3. Crianças asiáticas pareceram ter maior benefício do tratamento que crianças brancas, e a maioria das intervenções perdeu efeito a partir do segundo ano.
Segundo os autores [21], ensaios clínicos prévios sugeriram, com exceção do timolol, que os tratamentos com atropina mostraram a mais alta eficácia, o que é consistente com os resultados desta meta-análise [22].
Não está ainda claro como a atropina reduz a progressão da miopia. Estudos iniciais sugeriram que o controle ocorreria por efeitos da atropina na acomodação do cristalino, enquanto estudos recentes mostram efeitos da atropina por via não acomodativa na retina e esclera [23,24].
Os efeitos colaterais das altas doses de atropina (glare, fotofobia e visão de perto borrada) e o efeito rebote após a interrupção do de seu uso, restringiu o emprego clínico generalizado desta terapêutica [19,25]. Contudo, a experiência clínica mostrou que o uso de baixa dose de atropina (0,01%) foi uma das mais efetivas intervenções identificadas nesta análise e que o seu uso praticamente não induziu sintomas clínicos [16]. Além disso, a baixa dose não está associada com a magnitude do efeito rebote observada com as altas doses de atropina. Isto faz do uso da baixa dose de atropina (0,01%) a estratégia definitiva candidata ao tratamento da progressão da miopia, embora os seus resultados precisem ainda ser replicados em outras populações.
CRITÉRIOS DE USO, CONTROLE E COMPLICAÇÕES.
Estudos atuais têm demonstrado que o uso tópico de baixa dose de atropina (1 gota, 1xdia, atropina a 0,01%) em crianças é efetivo no controle da progressão da miopia e é seguro, uma vez que o seu uso nesta concentração praticamente não induz sintomas clínicos [16]. Os efeitos colaterais observados com o uso de doses mais altas de atropina (1%, 0,5% e 0,1%) foram glare, fotofobia e dificuldade de leitura de perto. Eventuais efeitos colaterais que possam ocorrer durante o uso prolongado da atropina a 0,01%, como desconforto, hiperemia, lacrimejamento e embaçamento visual serão temporários e desaparecerão com a interrupção do uso da medicação. Portanto, o uso de baixa dose de atropina (0,01%) é uma das mais efetivas intervenções para o controle de progressão de miopia em crianças e o seu uso praticamente não induz sintomas clínicos. Além disso, o uso de baixa dose de atropina (0,01%) não está associado com a magnitude do efeito rebote observado com as altas doses de atropina (1%, 0,5% e 0,1%). Isto faz do uso da baixa dose de atropina (0,01%) a estratégia definitiva candidata ao tratamento do controle da progressão da miopia, embora os seus resultados precisem ser replicados em outras populações.
PERFIL DO CANDIDATO AO TRATAMENTO COM ATROPINA
1.Idade: crianças a partir de 5 anos de idade, portadoras de miopia igual ou maior que -0,75D. O tratamento é feito com a instilação de 1 gota por diária à noite do colírio de atropina (0,01%).
2.Tempo de uso: até o final da puberdade, quando a miopia comumente estabiliza.
Chia et al [16] mostraram que depois de cinco anos de uso, as crianças usando baixas doses de atropina em gotas (0,01%) eram as menos míopes quando comparadas com as crianças tratadas com doses mais elevadas; que o uso de 1 gota por dia do colírio de atropina a 0,01% diminuiu a progressão da miopia em 50% em comparação com as crianças que não foram tratadas com a medicação em um estudo anterior; que o uso da atropina (0,01%) foi seguro o suficiente para ser usado em crianças de 6 a 12 anos, por até cinco anos, embora mais estudos sejam necessários. A atropina (0,01%) causando dilatação (midríase) mínima da pupila (inferior a 1 mm), minimizou a sensibilidade à luz, experimentada em concentrações mais elevadas. As crianças, também, não experimentaram a perda da visão de detalhes com o medicamento de baixa dosagem.
-Exame oftalmológico pré-tratamento deve incluir:
-Avaliação clínica oftalmológica completa.
-Acuidade visual com e sem correção.
-Refração (sob cicloplegia).
-Biomicroscopia.
CONCLUSÃO
A miopia aumentou significativamente em todo o mundo ao longo das últimas décadas e é hoje uma das principais causas de deficiência visual globalmente. Nos Estados Unidos da América, estima-se que 42% da população sejam míope, 25% acima do que era registrado nos anos 70 [26]. Os países asiáticos desenvolvidos apresentam taxas de miopia de 80-90% entre os jovens adultos [2-4]. Segundo dados do Conselho Brasileiro de Oftalmologia, o Brasil, com 201 milhões de habitantes, tem a população míope estimada entre 22 e 72 milhões de indivíduos, e entre 2 e 7 milhões de pessoas com miopia degenerativa [12]. Portanto, sem intervenções para controlar o progresso da miopia, a prevalência de miopia patológica deverá continuar aumentando. Atualmente, sua prevalência global é da ordem de 3% e, uma proporção muito alta destas pessoas desenvolverão neovascularização coroidal miópica que é a causa principal de perda visual progressiva [7].
Para ajudar a combater este grave e sério problema de saúde pública, a comunidade oftalmológica de todo o mundo, conta hoje, com o uso do colírio de atropina na concentração de 0,01%. O efeito do uso de 1 gota diária do colírio de atropina (0,01%) no controle de progressão de miopia em crianças tem na literatura médica consultada, comprovação de sua eficácia e sobretudo de sua segurança. Portanto, concluímos que o uso do colírio de atropina (0,01%) no controle da progressão de miopia em crianças é de eficácia comprovada e reconhecida cientificamente.
Este é o nosso parecer, s.m.j.
Conselheiro Adamo Lui Netto
APROVADO NA REUNIÃO DA CÂMARA DE CONSULTAS, REALIZADA EM 24.03.2017.
HOMOLOGADO NA 4.772ª REUNIÃO PLENÁRIA, REALIZADA EM 04.04.2017.
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