O exercício da Medicina tem preceitos basilares e as novas tecnologias devem se moldar a ética da profissão. “Entendemos que a tecnologia é necessária e traz avanços e benefícios ao paciente, mas precisamos ter o controle ético de sua aplicabilidade na Medicina". Com esta reflexão, o presidente do Cremesp, Angelo Vattimo, abriu o 2º Fórum Bioética Digital e Tecnologia, realizado nos dias 30 e 31 de outubro de 2024. A abertura também teve a participação de Irene Abramovich e Wagmar Barbosa, respectivamente, 1ª e 2º secretários do Cremesp, além do vice-corregedor do Conselho Federal de Medicina (CFM), Francisco Eduardo Cardoso. Contou ainda com palestra do Youtuber do canal Akitando e co-fundador da consultoria Codeminer42, Fabio Akita, que explanou sobre as funções, aplicações e conceitos da Inteligência Artificial (IA).
Para Cardoso, a integração da tecnologia digital está transformando profundamente a prática médica e a relação médico-paciente. “No entanto, a incorporação da IA na Medicina levanta questões éticas que merecem nossa atenção. A transparência dos algorítmos, a privacidade dos dados dos pacientes e a responsabilidade das decisões tomadas com auxílio de IA são aspectos cruciais que devemos considerar”, ponderou ele.
Wagmar Barbosa explicou que o intuito do fórum é oferecer informação e mostrar um pouco ao médico qual é o impacto e implicações das novas tecnologias na prática da Medicina.
Akida explicou que o conceito de IA é abordado desde a criação dos computadores na década de 1940, mas se tornou um produto disponível apenas a partir de 2022. De acordo com ele, o maior problema da IA é estar fundamentada em bases da matemática e computação; sendo um equívoco fazer qualquer analogia sobre seus sistemas e as redes neurais humanas. Akida explicou que o ChatGPT, por exemplo, não responde perguntas ou busca ser criativo, apenas complementa o que foi escrito com algo que faça sentido. No entanto, 90% dos dados que alimentam essa IA são ruins e seu aperfeiçoamento futuro exige a catalogação da relevância dos dados.
DIA 30/10
Mesa 1 - Ética e limites dos sistemas de suporte à decisão clínica na prática médica
O médico e consultor especializado em transformação digital na saúde, Leandro Costa Miranda, apresentou palestra sobre o uso de sistemas para apoio à decisão médica, buscando melhores práticas em benefício do paciente. De acordo com ele, esses sistemas já são utilizados há algum tempo na Medicina, e vêm se aprimorando, por exemplo, com auxílio de IA. Basicamente, trata-se de uma ferramenta tecnológica, que pode ser um software; com funcionalidades estabelecidas por interface que incluem o médico, profissionais de saúde, paciente, familiares, e de uma grande base de conhecimento e regras, que também dependem de dados clínicos. Em geral, são sistemas que auxiliam a decisão, reduzindo variabilidades e aumentando sua eficiência.
A mesa foi presidida por Angelo Vattimo, mediada por Wagmar Barbosa de Souza e comentada por Fábio Akita. Também contou com a participação dos debatedores Osvaldo Landi, gerente médico de Inovação e Dados da Fundação Instituto de Pesquisa e Estudo de Diagnóstico por Imagem (Fidi); Fabio de Cerqueira Lario, gerente médico de Informática Clínica do Hospital Sírio-Libanês; e Marco Aurélio Guimarães, professor doutor em Medicina Legal e Bioética da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP).
Mesa 2 - Inovação Médica - até onde podemos ir?
A palestrante Paula Fuscaldo Calderon, nefrologista e diretora da Sociedade Brasileira de Informática em Saúde (SBIS), além de médica especializada em tecnologia da informação e co-fundadora da Beth Health Tech, falou sobre a aplicabilidade e benefícios da inovação clínica e tecnologia na saúde. Entre outros tópicos, discorreu sobre a utilização da visão computacional para interpretar imagens como as ressonâncias magnéticas e as tomografias para diagnósticos mais precisos. Também abordou a utilização de machine learning (método de análise de dados que automatiza modelos analíticos) que treina algorítimos de IA para identificar padrões e fazer análises preditivas e rescritivas, capazes de antecipar complicações de saúde e personalizar tratamentos. A médica ainda explanou sobre alguns conceitos de Processamento de Linguagem Natural (PLN), ferramentas capazes de decifrar e compreender a linguagem humana e suas funcionalidades, que podem ter implicações profundas no atendimento ao paciente. De acordo com ela a inovação é inexorável à Medicina “Nós precisamos da inovação clínica, faz parte do avanço em Medicina e, por meio dela, evoluímos. Mas devemos estar atentos às consequências, aos malefícios para os pacientes e aos desafios éticos que a inovação pode trazer”, destacou.
A mesa foi presidida por Angelo Vattimo e mediada pelo conselheiro do Cremesp, Edson Umeda. Os debatedores desse bloco foram Giovanni Guido Cerri, professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e presidente dos conselhos de Inovação e de Radiologia do Hospital das Clínicas da mesma instituição; Thiago Julio, gerente médico de Inovação do Hospital Israelita Albert Einstein; e José Elias Matieli; major-brigadeiro e médico da reserva, coordenador do curso de Medicina da Faculdade de Medicina Humanitas, de São José dos Campos, e professor visitante do Laboratório de Bioengenharia do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA).
Ao final do primeiro dia de evento, a 1ª secretária Irene Abramovich ressaltou que a crescente incorporação de novas tecnologias na Medicina traz também a necessidade de atualização dos médicos que, como ela, são de outra geração e estão na ativa. “Eles precisam ser informados ou serão ultrapassados e não conseguirão entender do que se está falando. Temos que começar a pensar na utilização por todos, caso as novas tecnologias se tornem instrumentais dentro da Medicina”, concluiu.
Dia 31 de outubro
O 2º dia da nova edição do Fórum de Bioética Digital e Tecnologia do Cremesp continuou a trazer temas instigantes, que envolvem o futuro da profissão médica. Como reiterou Francisco Eduardo Cardoso Alves, vice corregedor do CFM na abertura desta etapa do evento, existe a necessidade premente da criação de uma especialidade em informática médica, “para contar com profissionais formados em tecnologia de ponta” e capazes de subsidiar desenvolvedores de IA com dados confiáveis.
Outro aspecto reforçado foi a expansão da IA em Medicina como processo inexorável, como tem ocorrido nas demais áreas do conhecimento – e, por isso, é preciso estar preparado. Porém, Angelo Vattimo, presidente do Cremesp também presente à abertura, ponderou que o uso adequado das novas ferramentas vai muito além do âmbito prático. “As facilidades trazidas pelas tecnologias devem caber dentro da ética e dos princípios basilares da profissão”, destacou, em uma atividade que contou ainda com presença de Irene Abramovich, 1ª. Secretária do Cremesp – que presidiu ambas as mesas da noite –; Wagmar Barbosa, 2º Secretário e um dos organizadores do Simpósio, e Daniel Kishi, 2º Tesoureiro, que esteve entre os debatedores.
Neste novo mundo digital, as ciências conversam entre si, como foi demonstrado pela palestra “Ponderações da Astrofísica relacionadas à Inteligência Artificial, Bioética e Tecnologia”, proferida por Roberta Duarte, doutoranda em astrofísica pela USP, que atua em IA aplicada à astrofísica. Segundo ela, neste assunto há várias intersecções entre a medicina e as ciências exatas. “As redes neurais usadas em IA foram inspiradas nos neurônios biológicos. A ideia foi ‘vamos imitar o cérebro’, inserindo dados de qualidade à máquina, para que ela pudesse ‘aprender’ sozinha”, revelou.
Além disso, um dos primeiros artigos sobre U-Net segmentada para imagens biomédicas, publicado em 2015, foi encabeçado por um neurologista de cujo interesse era encontrar meios de estudar as imagens cerebrais com propósitos diagnósticos, revelou a palestrante. “Recentemente vi um artigo no qual se usava IA para a identificação de um tipo específico de câncer de mama, algo semelhante ao que ocorre quando verificamos, pelo mesmo meio, evidências do surgimento de novos planetas.
Confidencialidade e Big Data
A mesa três do Fórum teve como tema “A Confidencialidade e Ética na Era do Big Data e Mídias Sociais”, tendo como mediador e palestrante Marcus Matsushita, conselheiro do Cremesp e médico patologista, e debatedores Anderson Paulucci, coordenador e professor de cursos de MBA em Tecnologia e Inovação; Augusto Salomon, Engenheiro eletrônico e CEO da Asgard Intelligence, startup dirigida a usar a IA para melhorar o desempenho das empresas ; e Ricardo Gamarski, médico e 2º. Secretário do CRM do Distrito Federal.
Conforme Matsushita, as mudanças no conhecimento acontecem hoje em um prazo muito curto, e as complexidades na área de anatomopatologia tem aumentado de forma acelerada. “Apenas para dar-se uma ideia, um dos símbolos da patologia é o microscópio e, este, em breve, será aposentado por conta dos meios digitais”. Como informa, há neoplasias reclassificadas, depois de novos estudos de análise molecular, sendo que algumas deixaram de existir da forma com que eram conhecidas antes.
As inovações vêm sempre acompanhadas de diversos dilemas éticos e bioéticos, argumentou. Por exemplo, os bancos de tumores, que congregam amostras biológicas resultantes de procedimentos médicos, contam com regulamentações técnicas e éticas que implicam que o paciente deva autorizar a guarda de suas amostras que, caso contrário, irão ser descartadas em 90 dias. Porém, a questão é o que fazer com informações obtidas a partir das análises daquele material. “Se for verificada alteração, devemos informar ao dono da amostra? E se ele não quiser saber? Seus familiares terão o direito de ser informados, já que eventuais mutações transmitidas geneticamente podem envolvê-los? ”, são apenas algumas das questões ainda sem respostas, trazidas pelas inovações tecnológicas, diz o conselheiro.
Em outro aspecto abordado por sua fala esteve a banalização dos dados pelos próprios médicos e estudantes de medicina com o emprego de redes sociais. “Essa divulgação excessiva não gera informação nenhuma”, afirmou.
Já o engenheiro Augusto Salomon buscou traçar um panorama sobre a rapidez que os meios tecnológicos têm processado novas informações. “Se para dobrar o conhecimento da humanidade eram necessários 25 anos, na década de 70, hoje estima-se que isso ocorra em três dias” – ponto de vista que foi contestado pelo vice corregedor do CFM, ao afirmar que “meta-dados não são equivalentes a conhecimento”.
Lidar com tudo isso pode ser desafiador, contudo, trazer enormes benefícios. “Estudo recente cruzou, por IA, informações de drogas aprovadas, mas não usadas em tratamentos, com doenças consideradas raras, para as quais não são feitos grandes investimentos. Os resultados indicaram que centenas poderiam ser curadas, sem novos custos”, destacou Salomon. Outro estudo com IA no qual foram analisadas conclusões de milhares de tomografias computadorizadas de pessoas com doenças cardíacas apontou “a possibilidade de se diagnosticar infarto do miocárdio com cinco anos de antecedência”, acrescentou.
Outras colocações trazidas no encontro disseram respeito à qualidade dos dados como ponto fundamental para subsidiar os programas; necessárias adaptações de linguagem ao analisar as sugestões de IA vindas de outros países, e demanda por regulamentação rápida, mas pensada de uma forma não tão rígida que desestimule o uso.
Telemedicina e ética
A Mesa 4 do Simpósio de Bioética Digital e Tecnologia versou sobre “Telemedicina: o Impacto Ético na Prática, tendo como mediador Eduardo de Campos Werebe, Conselheiro do Cremesp e Cirurgião Torácico; palestrante Chao Lung Wen, membro da Câmara Técnica de Informática em Saúde e Telemedicina do CFM e do Cremesp; e como debatedores Carlos Roberto Ribeiro de Carvalho, professor titular da disciplina de Pneumologia do HC/FMUSP; Caio Seixas Soares, CMO (Chief Marketing Officer) da empresa Teladoc Health Brasil; Rildo Pinto da Silva, doutor em IA pela clínica médica da FMRP/USP; e Francisco Eduardo Cardoso Alves, vice corregedor do CFM.
Mesa 4
Para Chao, ainda que existam normas bem estabelecidas sobre Telemedicina – Resolução CFM n° 2.314/2022 e Lei n° 14.510/2022 – muitas dúvidas e mitos ainda permanecem no tema. “Muita gente considera que é uma ferramenta, mas, na verdade, é um método. Que surgiu para substituir um atendimento presencial, quando a intenção é dar continuidade ao mesmo. Não há conflitos, são os mesmos médicos, submetidos ao mesmo Código, usando métodos tecnológicos para exercer a medicina".
De acordo com o especialista, deve-se dar preferência para que a primeiro atendimento seja realizado de maneira presencial, adotando a teleconsulta para o monitoramento do paciente, que deve ser solicitado para voltar à presencial quando preciso, mas essa sequência pode ser alterada pelo profissional, seguindo sua própria autonomia.
Eventuais dificuldades para o uso de uma ferramenta “tão importante” ocorrem, por vezes, por falhas didáticas ao explicar todos os pontos envolvidos na telelemedicina aos novos profissionais, ou até mesmo por formação deficitária em Medicina pelas faculdades.
“Usar a Telemedicina não significa uma ‘desumanização’ do atendimento. É o contrário. Não disponibilizar um recurso a quem precisa vai contra o artigo 32 do Código, que veda ao médico ‘Deixar de usar todos os meios disponíveis de promoção de saúde e de prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente’”.
Veja no Youtube o primeiro dia do Simpósio
Fotos do primeiro dia
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Fotos do Segundo dia
Crédito das fotos: Osmar Bustos e Marina Bustos
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