 João Maria, Mauro, Renato e Eurípedes durante o encontro, realizado na sede do Cremesp
Analisar a questão – atual e bastante polêmica – da cannabis sativa, popularmente conhecida como maconha, sob os aspectos da cultura, da saúde e da justiça, foi a proposta do seminário que o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) promoveu em sua sede, reunindo diversos especialistas dessas áreas, no dia 1º de dezembro.
Sob a coordenação da Câmara Técnica de Psiquiatria, representada pelo vice-presidente da Casa, Mauro Aranha, e Guilherme Peres Messas; e da Câmara de Políticas Públicas, representada pelo conselheiro Eurípedes Balsanufo Carvalho, a abertura do encontro contou com a participação do presidente do Conselho, Renato Azevedo Júnior, e de João Maria Correa Filho, presidente do Conselho Estadual sobre Drogas (SP).
Na primeira mesa foram apresentadas as seguintes palestras:
Pharmakon na filosofia platônica, por Maurício Pagotto Marsola, professor efetivo de História da Filosofia Antiga na Universidade Federal de São Paulo, que comentou o uso do termo pharmakon nos diálogos de Platão, quando recebeu nova elaboração conceitual e ética. Ele explicou que, por meio do uso da razão e da experiência, esse termo tanto pode significar uma droga que cura e dá prazer, quanto um veneno que mata, em analogia à multiplicidade de reações que a cannabis pode apresentar em função de seu uso.  Guilherme, Maurício, Mauro, Eurípedes, Fiore e Zuardi
A antropologia da Cannabis sativa foi debatida por Maurício Fiore, antropólogo e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Ele abordou passagens sobre as relações do homem com a cannabis, que datam de 6 a 7 mil anos e foram esculpidas pela humanidade ao longo da história, incluindo seu uso medicinal pelos chineses. “O próprio efeito da droga é uma construção, jamais podemos generalizar sociologicamente os padrões de consumo, sem levar em conta as clivagens sociais básicas. Há muitos agenciamentos, desde o nome, cannabis ou maconha, seu amplo espectro de sensações, que pode variar entre o sono e a excitação, a redução de ansiedade ou efeitos estimulantes, ou ainda o uso terapêutico informal.”
Na palestra A fenomenologia da embriaguez pela Cannabis, Guilherme Peres Messas, membro da Câmara Técnica de Psiquiatria do Cremesp, buscou aliar o ponto de vista das ciências do espírito ao das ciências biológicas, comentando e ampliando o entendimento de estudos epidemiológicos que associam o uso da maconha a psicoses durante a adolescência.
Em Cannabis: a planta que faz adoecer e a planta que cura, Antônio Waldo Zuardi, professor doutor da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, trouxe novamente à discussão a ambivalência de resultados em estudos, agora no campo da medicina. “O estudo mais aprofundado é recente, com a identificação, no início dos anos 60, da estrutura química do THC, responsável pelos efeitos psicoativos, e a identificação e clonagem dos receptores, além da descoberta do sistema canabinoide. Há os que aliam a cannabis a sintomas psicóticos, notadamente na adolescência, quando os casos parecem ser mais críticos, principalmente em indivíduos suscetíveis à maconha. A cannabis, entretanto, não é só THC, há mais de 80 canabinoides identificados e, na mesma planta, tanto podem ser encontradas substâncias que produzem sintomas psicóticos como aquelas, ainda em estudo, que conseguem tratá-los”, esclarece.  Sobrinho, Adilson, Mauro, Eurípedes, Bertolote, Leon e Maronna
Na segunda mesa, foram debatidos aspectos do pensamento jurídico e da saúde no uso da maconha. Em Considerações sobre despenalização, descriminilização e legalização, Adilson Paulo Prudente do Amaral Filho, procurador da República no Estado de São Paulo, buscou situar e definir esses conceitos. Segundo ele, o tráfico e o porte da maconha foram criminalizados, mas o consumo não. Essa criminalização era punida com prisão, mas desde 2006, esse cenário mudou. O porte foi despenalizado, mas não descriminalizado, recebendo uma resposta mais branda do direito penal, como advertência, prestação de serviço à comunidade ou medida socioeducativa. Continua sendo crime, mas houve um abrandamento, uma evolução”, explica. “O direito penal serve muito pouco para a questão do consumo. Ele deve ser tratado como questão de saúde pública, com necessidade de regulamentação do uso, até se chegar à legalização, um passo além, com a criação de formas de produção e venda da droga, transformando a cannabis, como é o mercado do álcool e do tabaco. Mas se legalizar, temos de criar uma agência para regulamentar”, acredita. Entretanto, ele questiona se nosso sistema de saúde está preparado para absorver um aumento do consumo da cannabis. “A estrutura de saúde não dá conta do que tem; se deixar o Estado cuidar dessa questão, ele vai dar conta?”, questionou.
No campo da saúde, José Manoel Bertolote, professor colaborador do Departamento de Neurologia, Psicologia e Psiquiatria, da Faculdade de Medicina de Botucatu – Unesp apresentou um histórico e cronologia da proibição da maconha pelas organizações mundiais. Ele ressaltou que, embora o grande valor do cânhamo sempre tenha sido têxtil, a maconha foi, por racismo e preconceito, considerada entorpecente com o mesmo grau de risco do ópio e da cocaína. “As recomendações técnicas da OMS para diminuir o grau de risco para a saúde individual e pública infelizmente não encontram ressonância entre as autoridades”, diz. Entre os países que autorizam o uso médico da planta estão Bélgica, Canadá, Índia, Israel, Itália e 14 Estados dos EUA.
A experiência da Justiça Terapêutica em São Paulo foi apresentada por Mário Sérgio Sobrinho, procurador de Justiça da Procuradoria de Justiça Criminal no Fórum de Santana. Ele explicou que a justiça terapêutica se espelhou na prática dos EUA, por meio da análise de casos de infração penal com forte componente de drogas como motivador da prática delituosa. No Brasil, “aplicada nos juizados criminais especiais, com apoio de grupos de autoajuda, desde 2000, a justiça terapêutica tem o objetivo de esclarecer os usuários acerca do abuso dessas substâncias, e a relação delas com a conduta praticada”, explicou Sobrinho. “Desde 2005, mais de 10 mil casos foram atendidos pela justiça terapêutica, com auxílio de grupos como AA, NA, Allanon, AME etc. Desse total, 53% das pessoas encaminhadas chegaram ao final do tratamento, com bons resultados”, finalizou.
Segundo o procurador, há uma palestra inicial motivacional antes da audiência com promotores e juízes. Caso não aceitem participar, ficam sujeitos à legislação vigente. “Tem de haver convergência entre a área jurídica, da saúde e a comunidade para acolher o dependente químico e aperfeiçoar as estruturas de trabalho”, avalia.
Na palestra Desafios da atenção pública aos agravos da Cannabis, Leon de Souza Lobo Garcia, assessor da Área Técnica de Saúde Mental do Ministério da Saúde, destacou a política do governo federal na questão das drogas, apresentando as diretrizes para a rede de cuidados, que inclui ações no campo da saúde, estimulando acolhimento nos CAPS AD, assistência social, secretarias de direitos humanos e de drogas. Ele defende a liberação, mas acredita que “o ambiente é desfavorável à descriminalização, pois o debate está pautado no senso comum e fortemente marcado por questões moralistas, com a mistura cada vez maior de grupos religiosos.”
Em O Uso de Cannabis no Brasil: despenalizar, descriminalizar, legalizar e regular?, Cristiano Ávila Maronna, diretor do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, disse que há uma espécie de polarização em torno do assunto. “De um lado, a intolerância em relação às drogas criminalizadas e, de outro, uma completa leniência em relação às drogas institucionais”, afirmou. De acordo com Maronna, “não há critérios adequados para distinguir quem é usuário e quem é traficante, atualmente definido pela condição social dos agentes”, disse Maronna. “Isso acontece porque a nossa legislação permite que a pessoa seja condenada por tráfico por presunção. Basta ser flagrada com uma certa quantidade de drogas para se indiciar. Se o sujeito é pobre, jovem, negro ou pardo, é preso pelo policial, sem investigação, e seu testemunho impossibilita qualquer possibilidade de defesa. A consequência é que o sistema prisional, que nunca foi modelo, está em colapso, com mais de 500 mil presos. Desse total, 1/3 está preso por conta das drogas.” Para ele, a primeira discussão é reconhecer a legitimidade de toda e qualquer substância, a despeito de qualquer prejuízo que possa causar. “A palavra é regulação, pois proibir consumo não impede formas alternativas de acesso, e cria um mercado clandestino interessante para as máfias”, defende.  Auditório lotado demonstrou interesse dos inscritos pelo tema
Texto: Aglaé Silvestre Fotos: Osmar Bustos
Tags: Cannabis sativa; plenária, entorpecente, planta, terapêutica, descriminilização.
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