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26-02-2012 |
Lígia Bahia |
Licença para faturar e matar |
Tomara que o veredicto seja outro. Ao puxar de baixo da superfície a cadeia de elementos que confluíram para o drama se verificará que um dos mais perversos elementos da privatização da assistência à saúde é a autorização do funcionamento de emergências que podem recusar assistência a pessoas com problemas graves e requerentes de socorro imediato. Há um consentimento tácito que legitima a seleção de pessoas segundo riscos contábeis e não de saúde. Por incrível que pareça a quem não esteja familiarizado com as regras ad hoc do sistema de saúde brasileiro, não são as condições clínicas que garantem o acesso à emergência. Instalaram-se prontos-socorros destinados apenas aos ricos, nos quais não entra quem mora ou trabalha perto, quem por ali está passando, quem for atropelado na porta etc. Por definição, uma unidade emergência deve ser aberta; não pode ficar resguardada por entrepostos burocráticos para conferência de vinculação a planos e seguros de saúde e caixas de pagamento. O que aconteceu com o secretário do Ministério do Planejamento foi a não ultrapassagem da barreira econômica pré-atendimento. Não se tratou exatamente de omissão de socorro e sim da institucionalização da desassistência. Portanto, as medidas adequadas para evitar novos casos precisam incluir mudanças nas instituições. A arquitetura casa grande e senzala é totalmente inadequada para unidades de saúde, especialmente no contexto de redução de desigualdades no país. A ANS, instituição pública que se apressou a isentar o plano de saúde de qualquer responsabilidade, tem que no mínimo ficar de castigo para passar a limpo seus deveres de casa. Embora esse caso não se caracterize como erro médico, é um evento exemplar para chamar a atenção de profissionais de saúde que desempenham papeis aviltantes no jogo de empurrar pacientes para fora de determinados serviços de saúde. Uma possível explicação para a estratificação na saúde, num contexto de redução de desigualdades, é que pessoas com tratamento e planos de saúde subsidiados por impostos quase ocultos e aporte financeiro de seus empregadores tenham passado a considerar que conquistaram por mérito uma condição natural de superioridade em relação aos demais. O que tem sido designado como assistência privada de saúde de qualidade no Brasil é um circulo de intimidade. Um ambiente comum, um encontro entre pares, cujo pressuposto é a existência de desiguais. O primeiro hospital que recusou o atendimento (é, sim, credenciado pela Geap, mas só para radioterapia) tem sido amplamente utilizado por diversos planos para funcionários públicos dos Três Poderes. O outro tem o mesmo perfil de clientes. A conta de maior valor paga pelo Senado para o Santa Lúcia, em janeiro do ano passado, ficou em R$ 503.747.000, e a mais barata, R$ 17.847.000. No mesmo período o valor médio das internações na rede do SUS foi R$ 941,47. Ou seja, os hospitais têm o direito privativo de atender quem bem entendem, mas não dispensam o financiamento público. Estampar nome de santo ou de bom samaritano na placa e agir com refinada indiferença às necessidades humanas não combina. Muitas doses a mais de democracia não vão tirar ninguém do sério e permitirão inverter uma hierarquia iníqua. Vida vem na frente de faturamento. Saúde para todos não é conversa mole para boi dormir. Lígia Bahia é vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professora de economia da saúde no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ) Artigo originalmente publicado pelo jornal O Globo em 20/02/2012 e reproduzido pelo site do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo |