“O SUS está num processo lento de degradação”
“Não reduziremos a mortalidade materna sem uma condição segura para as mulheres, especialmente as mais carentes”
Crítico do que considera uma “americanização” do Sistema Único de Saúde (SUS), o ex-ministro da saúde (gestão Lula) e atual diretor-executivo do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (Isags), José Gomes Temporão, avalia que o Brasil enfrenta um lento processo de degradação do sistema público e fortalecimento do privado. Para ele, há um paradoxo do governo no orçamento da saúde pública com a promoção da renúncia fiscal. E, ainda, que esse subfinanciamento crônico está por trás dos principais problemas do SUS. O médico sanitarista e ex-presidente do Inca também é enfático no que diz respeito às políticas de enfrentamento do alcoolismo, defendendo a punição ao motorista embriagado e o fim da propaganda de bebida.
O doutor tem declarado que o SUS brasileiro é muito bem visto internacionalmente. Mas por que a saúde é um item tão mal avaliado pela população brasileira?
Participei de uma reunião em Londres sobre saúde pública, em 2009, em que, após ouvir relatos de ministros da saúde do mundo inteiro, o epidemiologista, pesquisador e professor da Universidade de Londres, Michael Marmot, recomendou: “aprendam português e olhem para o Brasil”. Ele se referia aos resultados que apresentamos: um sistema universal de saúde com abrangência superior a 75% da população, único país com cobertura universal para portadores de HIV e o segundo em transplantes realizados (atrás apenas dos Estados Unidos), um programa de Saúde da Família para 100 milhões de cidadãos e aumento da expectativa de vida. Estudo em profundidade consolidado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pinad) 2009, com 300 mil pessoas, mostrou que 85% delas avaliaram como bom o atendimento recebido nos últimos 15 dias no SUS. Mas o que acaba aparecendo são pesquisas de rua sobre o que o cidadão acha da saúde brasileira e ele responde influenciado pela visão negativa retratada pela mídia.
Também é sua a afirmação que o Brasil passa por um processo de “americanização do SUS”. Em que sentido?
O sistema de saúde dos Estados Unidos é um dos piores do mundo, apesar da reforma proposta pelo presidente Obama. Lá a saúde é mercadoria, enquanto no Brasil é direito. Estamos num processo lento e gradual de degradação do SUS. Há um paradoxo na saúde pública: ao mesmo tempo em que o governo diz que é prioridade, subsidia a renúncia fiscal (com abatimento de imposto de renda de pessoas física e jurídica). Esses tributos deixam de ser aplicados na saúde, levando a classe média aos planos privados.
Qual é o maior problema que se enfrenta no governo para a condução do SUS?
O subfinanciamento crônico está por trás de tudo: da percepção ruim da população sobre o tempo de atendimento, da falta de médicos nas regiões Norte e Nordeste etc. E os especialistas em saúde sabem que apenas uma “melhor gestão” não adianta. Há uma fragilização do sistema público e fortalecimento do privado.
O Senado rejeitou a destinação de 10% da receita corrente bruta da União para o SUS. Como avalia o desfecho da Emenda 29?
Teve um avanço, no sentido de que as prefeituras e os Estados não poderão maquiar as verbas utilizando-as para outras atividades que eram atribuídas à área da saúde. Mas também há uma frustração sobre a possibilidade de destinação de mais recursos para o SUS.
Por que isso aconteceu?
Houve uma perda de hegemonia do movimento sanitarista, o mesmo que conseguiu universalizar o direito à saúde, e também de poder político da bancada de médicos e defensores do sistema. Entidades como os CRMs e CFM e outros profissionais da saúde lutaram, mas não foi suficiente. Se houvesse um movimento da sociedade civil e dos sindicatos de trabalhadores para a aprovação de mais verbas para a saúde, talvez o resultado fosse outro.
Quando ministro, o doutor defendeu a restrição da propaganda de bebida alcoólica e o aborto como questões de saúde pública. Por que esses temas não avançam?
Está havendo uma maior conscientização da população, nos últimos três anos, sobre os problemas relacionados à bebida e à Lei Seca. É um avanço, embora alguns Estados ainda não assumam o te¬ma como questão de importância da saúde pública. Defendo a radicalização, propondo que o motorista que dirigir embriagado, e cujo acidente cause vítimas, seja preso e aguarde julgamento na cadeia. É uma medida didática e punitiva, como acontece nos Estados Unidos e Inglaterra. Há interesses econômicos das emissoras de TV, que faturam bilhões com a propaganda, e até a Seleção Brasileira de Futebol é patrocinada pela indústria de bebidas, para vergonha nacional. A propaganda é um dos fatores responsáveis pelo estímulo ao consumo irresponsável, principalmente entre jovens e crianças. E o problema do álcool é mais grave que o do crack porque degrada a vida lentamente. Já o aborto foi descriminalizado em países de tradição religiosa tão forte quanto o Brasil, como Portugal, Uruguai e Argentina. Aqui não há discussão nacional sobre o tema. Mas não se reduzirá a mortalidade materna sem uma condição segura para as mulheres, especialmente as mais carentes, que adotam métodos abortivos, que levam à infecção, mutilação ou morte. A Igreja tem uma posição de misoginia, com seu machismo arraigado. Há uma confusão entre descriminalizar e ser favorável ao aborto.
Quais são os progressos obtidos pelo Isags em sua proposta de intercâmbio do conhecimento sobre a gestão em saúde?
O Isags tem sede permanente no Rio de Janeiro e é financiado com recursos de 12 países sul-americanos. É uma experiência com troca de informações e construção conjunta de políticas para sistemas universais, determinantes sociais, redes de vigilância para doenças infectocontagiosas e crônicas, acesso universal a medicamentos e recursos humanos para a saúde. Publicaremos dois livros com um panorama da saúde e do sistema de vigilância no continente e, a partir daí, trocaremos experiências.
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JORNAL DO CREMESP Nº 289